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Existem pessoas de quem a gente gosta instantaneamente

Eu gostei da minha sogra já na primeira vez que a vi. Cheguei da Unicamp, com meus 18 anos de idade, subi para a casa de minha então namorada, Fabiana, e nos sentamos na área da frente do casarão da rua Presidente Roosevelt. Passados uns minutos, chegou minha sogra, Sra. Waldeth Tetzner Gavioli, sentou-se e começamos a conversar. Eu tinha acabado de receber nota por um trabalho que tinha feito sobre Literatura Medieval e o Santo Graal e não é que minha sogra leu o trabalho todinho e teceu comentários lúcidos sobre o assunto?

Minha sogra era assim mesmo: tudo o que lia, conseguia entender, absorver, digerir e falar sobre aquilo com uma desenvoltura digna de estudiosos do assunto. Sua capacidade de se comunicar de uma forma clara e objetiva era imensa. Ela sempre fazia comparações e analogias, para que a gente entendesse e tudo ficasse mais claro. Não é à toa que sempre foi lembrada como uma professora excelente e inesquecível. Ela era assim também como pessoa.

Desde aquela primeira vez, eu passei a conversar muito com a minha sogra, porque nossas conversas fluíam toda vez. Eu telefonava para ela, quando batia a saudade no meio da semana, e conversávamos sobre tudo, sobre nada, sobre escola, política, sobre a vida. Minha sogra sabia como nos orientar em tudo de que precisássemos e conseguia nos acalmar com uma serenidade ímpar. Quando eu e a Fabiana terminávamos o namoro, eu continuava telefonando para a minha sogra, porque ela me acalmava, ela me alegrava e me confortava.

Acho que nos aproximamos tanto também por conta de minha profissão. Quando eu iria me formar e começar a lecionar, ela me orientava sobre procedimentos da sala de aula, sobre a parte documental do professor, seus deveres e direitos. A minha sogra foi minha professora de didática e eu utilizo até hoje as dicas que ela me deu sobre a arte de ensinar, a qual ela dominava com excelência. Sabe, nada do que ela dizia ficava ultrapassado, porque ela caminhava junto com o tempo; parecia, inclusive, sempre estar à frente de seu tempo.

Minha sogra conversava sobre tudo, não existia assunto sobre o qual não conseguisse elaborar um papo gostoso e leve. Quando minha mãe morreu, ela chorou comigo, sentiu de perto a minha dor e me ajudou muito. Minha sogra praticava a empatia antes mesmo desse termo virar moda. Ela conseguia se colocar no lugar do outro, fosse esse outro quem fosse, e nunca julgava as vidas alheias. Seu olhar era acolhedor, de compaixão e de bondade. Sempre apontava as qualidades das pessoas, elevava a autoestima de quem estivesse ao seu lado, nunca falava mal de ninguém.

Minha sogra me ajudou tanto, em todos os sentidos, e foi uma avó maravilhosa para o meu filho, Diego. Ele fez o parquinho na esquina da casa dela e, todos os dias, ia ficar lá no casarão dos avós depois da escola. Ela dava banho nele no tanque ou ali no jardim, com mangueira mesmo. Assistia a desenhos com ele, contava histórias, cantava aquelas canções das infâncias passadas, ensinava lições de escola de maneira lúdica, preparava mamadeiras, alimentando, ao mesmo tempo, o corpo e a alma de meu filho. Eles viviam se telefonando até hoje.

E, quando a pessoa é tão boa, autossuficiente, forte e inteligente assim, a gente não quer vê-la sofrer, nem por um segundo. Quando minha sogra adoeceu, eu orava para que ela se curasse, para que aquela mente brilhante permanecesse lúcida, porque ela não merecia dor. Minha sogra ajudava tantas pessoas, sem alarde, sem propaganda, no silêncio de sua consciência tranquila. Ela não merecia sofrer. Minha sogra sabia muito sobre psicologia, sobre psiquiatria, então, ela sabia o que estava acontecendo com ela, estava lúcida, mas seu corpo não, e isso não era agradável.

Felizmente, ficou acamada por pouco tempo, ainda comandando e dando orientações. Eu me sentava ao lado da cama e a gente conversava sobre escola e sobre o passado, porque ela estava revivendo o que foi bom, rememorando quem passou por ela, ela estava se despedindo da gente. Ela era inteligente demais para que não tivesse consciência de que estava ocorrendo dentro dela. Ela e meu sogro, Sr. Wladismir, conversavam por horas durante esse tempo, numa despedida doce e recheada de amor que dura.

Minha sogra foi prática e didática até na passagem para uma outra vida: ela aguardou o marido e as filhas estarem com elas, juntos no leito da UTI, para terminar sua missão por aqui. Partiu serena, sem dor, como um passarinho. Minha esposa se confortou tanto ao presenciar sua mãe partindo sem sofrimento e sem tristeza. Acredito que os três se sentiram assim, e minha sogra mais uma vez foi professora, ali, na sua despedida, ensinando que a morte não tem que ser assustadora, trazendo-lhes o conforto necessário para seguirem sem ela. Sempre pensando nos outros, essa minha sogra amada.

Durante o seu velório, ouvi várias histórias lindas sobre ela. Tantas vidas foram tocadas pela vida de minha sogra de forma especial. Tanta gente enxergava aquela luz que ela emitia e ofuscava a tristeza da gente. Porque a vida é assim, é um vai e volta. A vida nos retorna conforme ofertamos. E o poder do amor fica. O amor é de dentro. O amor fica. Eu amei minha sogra e ela me amou. E isso é tudo.

Prof. Marcel Camargo

Graduado em Letras e Mestre em "História, Filosofia e Educação" pela Unicamp/SP, atua como Supervisor de Ensino e como Professor Universitário e de Educação Básica. É apaixonado por leituras, filmes, músicas, chocolate e pela família.

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