Havia ainda poucos dias desde a partida de minha avó. Eu chegava ao sobrado onde eu havia morado e convivido com ela e toda a família. Meu avô, sempre tão alegre, carinhoso, estava sentando numa cadeira à frente da casa, com um olhar perdido, pensativo. Pela primeira vez, nem percebeu que eu havia chegado. “Tá pensado em quê, vô?”. “Em quem poderia ser?”, apontou o indicador para o céu. Desde então essa era a forma como ele se referia a ela. Não tinha mais coragem de pronunciar seu nome. Olhando o horizonte, com a voz embargada, me disse: “agora, sou pássaro sem asa, meu neto! Eu tenho tentado, mas sem ela, eu não sei mais voar.” Ali, eu compreendi o que era um amor verdadeiro. Um amor pra sempre.

Lembrei-me imediatamente de certa vez, quando sentado à mesa, perguntei à minha avó, então com 81 anos: “vó, do que a senhora se lembra da época dos seus filhos pequenos, como era quando todos ainda estavam juntos?”. Ela me respondeu: “eu fui feliz. Seu avô sempre muito compreensivo. Às vezes, ele chegava, eu ainda tava na máquina. Eu costurava segunda, terça e quarta. Ele caseava, pregava botão…”. E, lembrando-se disso, ela se emocionou e chorou. “Não chora, meu amor. Você é o amor da minha vida, você sabe disso.”, vovô fez-lhe um afago. Vovó era completamente dedicada a ele. No entanto, não havia submissão. Havia entrega. Havia amor. Amor correspondido. Porque ela era também a sua alegria de viver.

Vovô e vovó viveram mais de 60 anos juntos. Foram milhares de dias de convivência. Sim, fiz as contas, mais de 20.000 (vinte mil) dias dormindo e acordando juntos, dividindo preocupações, alegrias, todos os sonhos, todos os projetos. Para ela, a felicidade era simplesmente a presença dele ao seu lado. O companheirismo. A compreensão. A vida de sacrifício à beira de uma máquina de costura tornava-se tão pequena diante da felicidade de tê-lo por perto. E, na alegria, na tristeza. Na saúde, na doença. Ele sempre estava. Era nítido o quanto ainda se amavam. Depois de tantos anos, os dois ainda nutriam o romance, a sensualidade sutil, perceptível na troca de olhares, na cumplicidade. No carinho. Aqueles olhos ainda tão apaixonados, ainda brilhavam, trocavam segredos, confissões. Depois de tantos anos, ainda se divertiam, ainda riam juntos. Ainda eram felizes. Havia o desejo, a vontade de estarem juntos.

Encontraram-se por acaso num fim de tarde, durante uma caminhada rotineira pelo passeio público da Rua Santa Luzia, no centro do Rio, nos idos de 1948. Amor à primeira vista? Talvez. Mas certamente não foi isso que fez aquela história durar tanto tempo. Houve muita renúncia, muito sacrifício, muita dedicação mútua. Muita paciência, parcimônia. Sabedoria. Muito amor, além da primeira troca de olhares. Uma história verdadeira. Muito distante das histórias de romantismo, de filmes e contos de fada. Uma história de amor, com todas as nuances e matizes que cabem à vida real.

Às vezes, parece que passamos a vida inteira na tentativa de esbarrar com um amor desses pela rua. Pois não há prêmio maior do que poder caminhar de mãos dadas em busca de sonhos em comum. Ter alguém ao teu lado que te faça sentir pleno, jovem, alegre. Livre. Alguém que torne teus dias, dias mais saborosos, mais leves. Alguém que respeite o teu silêncio. Alguém que tolere os teus defeitos. E que, algumas vezes, até veja certa graça neles. Alguém em quem você possa confiar sempre. Alguém que te conheça profundamente, e ainda assim te ame verdadeiramente. Alguém a quem você tenha vontade de contar todas as suas histórias. Alguém a quem sempre haverá algo a ser dito. Alguém com quem você consiga ficar em silêncio, sem que isso incomode, sem que isso seja constrangedor. Alguém que segure as pontas, quando você não tem forças para fazê-lo. Alguém que te faça rir, porque às vezes é o humor, a alegria, e não apenas o amor, o que sustenta uma relação duradoura. Alguém que deseje beber da mesma taça, de erguer contigo o mesmo cálice, brindar contigo a vida. Alguém com quem você possa viajar pra qualquer lugar do mundo, conhecer lugares juntos, novas culturas, novas histórias pra contar.

Alguém com quem você queria ficar em casa, apenas vendo uma bobeira qualquer na televisão. Alguém que acorde no meio da noite e te faça um carinho. Alguém cuja presença, alivia teus medos, teus pesadelos. Alguém que seja a primeira pessoa a quem você queira comunicar suas realizações ou seus fracassos. Alguém que, numa festa, numa reunião qualquer você olha e se sinta a pessoa mais feliz do mundo por sabê-lo seu. Alguém que te olhe com desejo. Alguém que mesmo depois de anos, você ainda tenha vontade de beijar em pé. Que te faça segurar a porta para um último beijo antes de ir embora. Alguém com quem você queira ficar enrolando na cama pela manhã, que te faça sorrir ao acordar. Que faça piada, que te irrite de vez em quando. Alguém que quando você passa por perto, num momento cotidiano qualquer, te faça ter vontade de voltar para dar um beijo, um abraço, um amasso qualquer. Enfim, alguém que você queira que esteja ao teu lado caseando, pregando botões. Para sempre.

Vovô ainda viveu mais cinco anos após a ida de minha avó. Porém, não houve um dia sequer em que ele não falasse em seu nome. Ele também partiu, há uma semana. Coincidentemente, na véspera de completar mais um ano de casado. Ela que sempre se preocupou em fazer-lhe as vontades, talvez também tenha ido na frente, preparar-lhe o lugar, o banquete. Gosto de pensar que o Senhor do Tempo tenha finalmente atendido ao seu pedido, que ecoava insistentemente pelos cantos do Sobrado, todos os dias: “Vem minha Dalila, vem me buscar!”. Findo o tempo de esperas, o pássaro ganhou asas novamente e voou ao encontro de sua amada, para juntos seguirem o “tempo da delicadeza”. Certamente, naquele dia seguinte, houve festa no céu para que celebrassem mais uma de suas bodas, desta vez as núpcias eternas.

O privilégio de ter convivido com eles todo esse tempo, de ter podido ouvir suas histórias e observar a consistência daquele amor cotidiano, fez-me entender que, encontrar esse amor verdadeiro é de fato como ganhar na loteria da vida. No entanto, também aprendi com eles, que a felicidade a dois não nasce do encontro, simplesmente. Ela se constrói a cada dia. Na vivência, na renúncia, nas certezas, que fazem-nos acreditar que vale a pena continuar. Na alegria, na tristeza. Na saúde, na doença. Estou certo – e muito grato à vida por isso – de que corre nas minhas veias o mesmo sangue dos meus avós, o sangue daqueles que – ainda que não haja garantias – só sabem amar se for pra sempre!