Descobrir o que nos move nesse mundo tão cheio de desafios é aceitar a contradição que cerca a condição humana; a mesma contradição que possibilita extrair arte de momentos de desesperança, vazio e horror.

Um pouco atrasada, assisti ao documentário “O Sal da Terra”, dirigido pelo alemão Win Wenders, sobre a trajetória do fotógrafo Sebastião Salgado. No trailer, a frase_”Um fotógrafo é alguém que desenha com luz. Um homem que escreve e reescreve o mundo com luzes e sombras”_ antecipa o que o documentário quer captar: a sensibilidade ímpar do fotógrafo, que enxerga e decifra o todo conforme sua visão e sentimento do mundo.

Mais adiante ele diz: “Se você colocar vários fotógrafos num mesmo lugar, todos farão fotos muito diferentes, cada um desenvolve sua forma de ver de acordo com sua história”.

E concluímos, junto a Salgado e Wenders, que nossa bagagem é muito mais vasta que aquela que refletimos. Nossa luz interior carrega mais nuances, matizes e contrastes que aquilo que simplesmente transparece em nossa face externa.

O documentário começa retratando a época em que Sebastião era economista e teve o primeiro contato com a câmera através de sua esposa, Lélia Wanik, arquiteta.

Deste momento em diante, decidiu arriscar-se em projetos grandiosos, que lhe custaram tempo e longos períodos de ausência longe dos filhos, Juliano e Rodrigo. Sebastião era visto por Juliano como um aventureiro, um tipo de super-herói, em vez de fotógrafo.

Trinta anos depois, ele finalmente acompanhou o pai numa missão. E relata: “Eu queria finalmente descobrir quem era aquele homem. O homem que eu conhecia somente como meu pai. Eu queria conhecer o fotógrafo e aventureiro pela primeira vez”.

Talvez o que Juliano quisesse realmente descobrir era o que impulsionava seu pai. O que fazia aquele homem deixar tudo e partir rumo a terras distantes e mundos conflitantes.

O que ele possivelmente descobriria é que seu pai estava em busca de respostas. E procurava desvendar o que todos nós tentamos entender pelo menos uma vez na vida: como é possível existir universos tão distintos numa mesma Terra? Como é possível encontrar um tanto de nossa humanidade dentro daqueles olhos famintos e profundamente vazios?

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Confesso que por alguns momentos questionei a arte de Salgado ao retratar a miséria humana de forma tão nua, real e crua, como se esmiuçasse o sofrimento a ponto de perpetuá-lo ao invés de redimi-lo. Minha angústia vinha do fato de que aquelas imagens um dia seriam parte de um livro de luxo, exposto em mesas de centro de residências de alto padrão, o que contrasta de forma cruel com a realidade das fotografias.

Porém, cabe a cada um de nós entender a função social da retratação da miséria, que cumpre seu papel quando deseja transmitir a empatia pela condição humana.

Após uma viagem pelo Nordeste, Sebastião percebe que o sofrimento o havia modificado.
Em 1984, parte para a Etiópia, onde trabalha junto à organização “Médicos sem fronteiras”. Ali, através de seu olhar aguçado, quer mostrar que uma grande parte da humanidade estava sofrendo uma aflição imensa, devido mais a um problema de partilha do que simplesmente a desastres naturais.

E reflete junto ao espectador: “Com a morte de cada pessoa, morre um pedaço de todos…”
De 1993 a 1999, trabalhou num projeto chamado “Exodus”, sobre o deslocamento de populações, e esteve em Ruanda, onde ocorria o maior genocídio da história do país. Assim relata: “Quando eu saí dali eu estava doente. Meu corpo não tinha nenhuma doença infecciosa, mas minha alma estava doente… Eu saí de lá sem acreditar em mais nada. Sem acreditar na salvação da humanidade. Não se podia sobreviver a algo assim. Não merecíamos viver. Ninguém merecia viver.” E completa, numa profunda comoção (que nos atinge também): “Quantas vezes pus as câmeras no chão para chorar com o que eu via!”

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Nesse ponto ele decide regressar para as terras onde viveu na infância, em Minas, e inicia um reflorestamento da região, que tinha sofrido um grande desmatamento ao longo dos anos. Assim, “a terra sarou o desespero de Sebastião. A alegria de ver as árvores crescerem e as fontes renascerem, tudo isso reacendeu sua vocação de fotógrafo”.

A partir deste momento, ele decide iniciar um novo projeto, uma homenagem ao planeta intitulada Gênesis.”Uma visão mais otimista do planeta que, durante muito tempo, Sebastião tinha visto tão devastado e destruído”.

Não sei se Juliano descobriu realmente o que impulsionava seu pai. Talvez acompanhando-o em sua última jornada, rolando pelo chão com lentes e câmeras em punho para fotografar elefantes marinhos em Galápagos, tenha descoberto o sopro que faz Sebastião arriscar a própria vida em busca do ângulo perfeito.

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Descobrir o que nos move nesse mundo tão cheio de desafios é aceitar a contradição que cerca a condição humana; a mesma contradição que possibilita extrair arte de momentos de desesperança, vazio e horror.

Não há limites para nosso espírito. Ainda que o corpo padeça com o envelhecimento e o sofrimento, nossa história será reescrita inúmeras vezes através da luz que nos habita e do sal que tempera nossa existência.

A contradição torna-se presente a todo momento. Luz e sombra se intercalam, e só nos resta usar o contraste a nosso favor, como fez Sebastião.

E no cerne de todo sofrimento, finalmente lembrar que nós somos o Sal da Terra, e ainda que nossos olhos não vejam mais nada, ainda é possível acreditar em alguma chance, ou simplesmente numa nova forma de liberdade…








Nasceu no sul de Minas, onde cresceu e aprendeu a se conhecer através da escrita. Formada em Odontologia, atualmente vive em Campinas com o marido e o filho. Dentista, mãe e também blogueira, divide seu tempo entre trabalhar num Centro de Saúde, andar de skate com Bernardo, tomar vinho com Luiz, bater papo com sua mãe e, entre um café e outro, escrever no blog. Em 2015 publicou seu primeiro livro: "A Soma de todos os Afetos" e se prepara para novos desafios. O que vem por aí? Descubra favoritando o blog e seguindo nas outras redes sociais.