Carta aos sobreviventes do covid. “Vivemos uma era onde a vida é mais virtual do que real”.

Os últimos 10 anos do século XXI (2010-2020) parecem realmente ser o testemunho histórico de uma década que muitos dirão no futuro que foi perdida. E eu explico por que:

Esta década foi, ao meu ver, um momento em que muitas das nossas referências desmoronaram, uma a uma, de maneira que parece não ter restado pedra sobre pedra, como um revival muito maligno do sentimento pós modernista que outrora tive, de desilusão, como um deja-vú indesejado daquele sentimento de impotência diante da infeliz constatação de que muitos dos meus heróis da geração anterior morreram de overdose e dos heróis desta, tornaram-se ou vilões ou irrelevantes.

Esta foi a década que encurtou distâncias e para fechar o ciclo de dor, veio o covid-19 que nos obrigou a viver confinados. Talvez, para que pudessemos refletir para onde a humanidade estava caminhando.

Nunca estivemos tão conectados, tão online, tão informáticos, VIVEMOS UMA VIDA VIRTUAL QUASE O DIA TODO, mas também tormano-nos quase autómatos, biónicos, fabricados, fakes, tal qual as fake news que passaram a ser parte do dia a dia.

Em um tempo em que as verdades absolutas do tiozão do whatsapp e do terraplanista da conspiração do YouTube massacram a ciência e nos empurram para uma Idade das Trevas 2.0, reloaded, é urgente que façamos um balanço de crescimento ou retrocesso. Mais uma vez outro deja-vu, só que desta feita, de uma época que sequer vivi.

As comparações com a idade medieval não param por ai: outra pandemia, felizmente menos letal, mas que só não está a matar mais pessoas por causa dos avanços sanitários. Ainda bem.

Hoje, com medo do contato social, muitos estão a relativizar a vida do favelado, do desfavorecido, do doente, do elo mais fraco deste lado história, o que pode seduzir a muitos de nós a tornamo-nos adeptos do darwinismo social.

Escrevo estas palavras não para dizer ou autoafirmar-me como dono da razão, ou como alguém que se assenta em pináculo moral e de estatuto mais elevado, o que não é de todo verdade.

Esse é apenas o meu testemunho de como me senti diante de tudo ao meu redor nesses últimos 10 anos.

Acredito que é totalmente dispensável se ter razão em uma era em que sequer conseguimos ser verdadeiramente felizes, onde até mesmo a tristeza é induzida, pasteurizada e fabricada.

Vivemos uma era onde a vida é mais virtual do que real, onde muitos de nós invejam a vida do influencer, que ostenta nas nossas caras através das redes sociais seus corpos sarados e suas vidas ditas perfeitas: mais um fake.

Afinal, toda gente tem olheiras e problemas.

Hoje, “graças” ao covid-19, sabemos mais do que nunca que todos, ricos e pobres, nobres e plebeus, na verdade, estão no mesmo oceano, embora não necessariamente no mesmo barco: o coronavírus não enxergava cor, etnia, status social, extrato bancário ou credo religioso.

Infelizmente, a conclusão que tenho é que uma doença conseguiu ser menos xenófoba, racista e preconceituosa do que a maioria de nós. Mas, agora, passada a pandemia, parece que não aprendemos nada, ou quase nada.

Vivemos uma era de extremos, onde nada converge para o centro e tudo tende aos extremos. Será que o nosso medo realmente vai nos conduzir à intolerância e a autodestruição?

Sim eu percebo os porquês dos medos e as razões para tal, mas não consigo perceber como estamos a cair novamente nesta mesma cilada, de confundir defesa com autodestruição.

Estamos cada vez mais fechados em nossos bunkers ideológicos, que já não podem mais ser chamados de think tanks, porque atualmente parece ser proibido pensar, ou pelo menos preferível que não o façamos.

Estamos a por abaixo pontes e a levantar muros cada vez mais altos: o medo torna a cada um de nós autômatos e assim, no automático e por default, tratamos a todos pelo mesmo critério da nossa desconfiança ou indiferença.

Afinal, não temos paciência para abrir as portas de nossas vidas e nos decepcionarmos novamente, certo?

Sinto que o mundo aprendeu com a pandemia a se isolar e a ser individualista.

Partilhar com o outro aquilo que temos, apenas no virtual, em troca de curtidas e seguidopres, mas partilhar desprovidos de proselitismo, da obrigatoriedade de o outro seguir à risca o nosso “sidur” ou as nossas rezas, nosso credo, seja o mesmo católico romano, protestante, judeu ou “whatever”, é mais complicado para muitos.

Ou seja: partilhar do seu pão sem projetar no outro uma cópia de quem você é do que você acredita, sem pré-julgamentos ou desprezo em relação ao que o outro tem a dizer quando se sentar à mesa conosco.

Mas esse é um processo de médio e longo prazo e nós temos sempre pressa. E também só temos 150 caracteres…

Não peço para você, leitor, concordar com o meu sentimento ou mostrar empatia, mas peço que considere essas palavras como um desabafo, uma confissão e não um sermão.

Eu posso estar errado em tudo que pontuei acima mas, assim como você, também estou em busca de acertar, independente do determinismo que insiste em referir que todos nós seremos produtos do meio em que estamos inseridos.

Penso que não vão faltar desafios para nós, os sobreviventes da covid-19. Entre tudo que espera a maioria de nós ao longo dos próximos anos, sejam os desafios econômicos consequentes da necessidade de pararmos o mundo, ou até mesmo os desafios de voltar ao convívio pós isolamento social, acredito que a restauração da esperança será o maior de todos estes. Sair do virtual e viver o real está mais complicado do que nunca.

Espero que Deus tenha misericórdia de todos nós, sem exceção. Se a década de 20 irá fechar um ciclo totalmente diferente do que foi a sua predecessora, só Ele sabe. Mas principalmente, depende de nós e das lições que aprendemos neste curto e intenso período histórico entre décadas.

Só o que sei é que precisamos viver a vida real e diminuir o tempo de exposição virtual para momentos que realmente vão agregar a nossa vida, como uma leitura que nos leve a refletir sobre o verdadeiro sentido da vida. Concorda?

Por isso, deixo aqui uma pergunta e peço a gentileza que me respondam:

O que mudou na sua vida em 10 anos? Você acha que foi uma década perdida? Ficou preso no virtual ou está vivendo a vida real?

*DA REDAÇÃO RH.

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Hebert Neri é jornalista, escritor, correspondente internacional e produtor musical. Atualmente vive em Portugal onde comanda o programa de rádio Neri Talks. Autor de 6 livros, Neri também é compositor de mais de 150 trilhas sonoras para rádio, cinema e TV.