Há um tempo eu penso sobre palavras que não são ditas, mas o filme “Que horas ela volta?” me deu imagens de sobra para fechar (e abrir) algumas reflexões. O que acontece com as palavras que não dizemos? E com as que nunca dissemos?
As luzes amarelas do cinema se acendem. Lá estou eu, segurando um lenço de papel, com os olhos vermelhos, em prantos. Olho para o lado, a amiga que me acompanhou na tarde “cinemística” está no mesmo estado. Nos olhamos, e a expressão comum foi “puta que o pariu, que filme”.
Como não sou parâmetro para intensidades lacrimais (choro com certa facilidade), não posso medir o impacto psicológico do filme de acordo com a quantidade de lencinhos que usei; mas digo, sem titubear, que o filme “Que horas ela volta?” é, de fato, marcante.
Dirigido por Anna Muylaert, vi que o filme está recebendo várias críticas, que andaram dizendo por aí que a Regina Casé está gorda (seres humanos sempre se superando), que, além de atual, o filme traz para a superfície várias questões incômodas (sobre as quais a maioria das pessoas não quer pensar ou falar), como a diferença de classes, o papel do empregado doméstico, as cotas das universidades, a relação entre pais e filhos na contemporaneidade, etc. etc. etc.
São tantas coisas despertadas pela trama que o meu cérebro quase travou na tentativa de selecionar alguma. Não consigo não atentar meu olhar para uma questão mais analítica e simbólica, então não fujo do ofício. Assim, penso no que mais me marcou no filme: o não-dito e a comunicação inconsciente que há – sempre há – e sempre vêm à tona, escapando pelos nossos poros e aparecendo nos momentos menos esperados, como uma alface que fica grudada no dente no meio do jantar de negócios.
Por isso, “Que horas ela volta?” me fez lembrar outro filme pelo qual sou igualmente apaixonada, “A pequena miss sunshine”. Há um tempo eu penso sobre palavras que não são ditas, mas o filme me deu imagens de sobra para fechar (e abrir) algumas reflexões. O que acontece com as palavras que não dizemos? E com as que nunca dissemos? Pra onde vão as palavras que ficam perdidas dentro de nós à procura de um receptor, de um objeto ou apenas de um ouvido amigo? Palavra presa se transforma no quê?
Bem, sabemos que o efeito da não-fala pode provocar tumores, ataques cardíacos e síndrome do pânico, mas, e quando não provoca nenhuma dessas coisas?
Mesmo quando algo não é dito, ficando relegado ao esquecimento ou, simplesmente, ao triste “ah, deixa pra lá”, já está sendo dito. Em alguns casos, dito e feito, porque a inconsciência nos leva a deixar escapar aquilo que menos quer ser visto. É justamente isto que o filme “Que horas ela volta?” retrata. São 110 minutos de uma trajetória analítica, só que sem análise.
O filme conta a história de Val (interpretada incrivelmente por Regina Casé), que vem do Nordeste para trabalhar na casa de uma família tipicamente rica de São Paulo. Cada personagem ocupa um lugar importante, como se fossem peças-chave no processo de amadurecimento e autoconhecimento, só que de uma maneira extremamente sensível. O “dr. Carlos”, o patrão de Val, é um homem severamente deprimido, que deixou de criar (ele é artista plástico) há tempos.
Quem engoliu a minha arte?, eu imaginei que ele se perguntaria depois de alguma sessões deitadinho no divã, dando voz ao estranho mais familiar que conhecemos – o inconsciente. Ele é passivo e se deixa ser devorado pela esposa dominadora, mas não por isso em menor sofrimento. Esta última percebe, em cenas pontuais do filme, a distância que construiu na relação com o filho. A “víbora” da história sempre tem muito a nos ensinar.
Por sua vez, o filho do casal, Fabinho, no fundo é filho da empregada, que trabalha na casa desde que ele era pequeno. Val é quem faz a FUNÇÃO de mãe (por isso, para a psicanálise, não cola essa história de ser contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo, uma vez que sabemos que PAI e MÃE não são aqueles que geram e provém o sustento financeiro, mas aqueles que exercem a FUNÇÃO de ser pai e mãe. E, convenhamos, isso não é nada fácil), uma vez que a mãe nunca está em casa, nem mesmo quando está. Val se põe no lugar de mãe deste filho órfão de pais vivos. Um dos socos na boca do estômago que o filme nos dá.
Val tem uma filha, Jéssica, de 19 anos, que mora no Nordeste. A filha foi criada por alguém que parece ser da confiança da mãe, mas que não é a mãe biológica. Jéssica é filha de mãe ausente, porém viva. Assim, ela repete a estória materna: tem um filho na adolescência e vai para São Paulo prestar vestibular, sem o filho.
Filho só existe com a mãe, e mãe só pode ser assim nomeada se tiver alguém que a coloque neste papel e/ou função. Durante todo o filme, escutamos Jéssica dizer “Val”, em vez de “mãe”. Essa última nomeação só acontece quando a mãe, enfim, se faz mãe. E ela se faz mãe justamente quando a filha a coloca neste lugar.
Um dos diálogos que mais me marcaram foi um de Val com a filha, quando a primeira diz: “Você se acha superior”, e Jéssica responde: “Não, eu não me acho superior, eu só não me acho inferior.” Jéssica ensina a mãe a escrever a própria estória.
A diretora fugiu de todos os clichês, e eu me surpreendi com o quanto estou acostumada a assistir filmes, muitas vezes, clichês. Em acreditar em estórias clichês. Em esperar que estórias clichês aconteçam comigo. Tive vergonha alheia de mim mesma. Claro que não contei isso para ninguém.
A comunicação ocorre mesmo quando não está ocorrendo. Algo está sendo dito. Val, por força das circunstâncias, não exerce a função materna. Muda-se para São Paulo para ganhar a vida (como milhares de pessoas fazem todos os dias e simplesmente não são sequer notadas no metrô. “Mas como assim olhar pro outro? Eu estou aqui ocupado com ____ “, complete a lacuna como quiser). Quando descobre que agora é mãe duas vezes (ou seja, é avó), pede demissão e diz para a filha buscar o neto para morar com elas. Acontece, então, a anunciação mais bonita do filme: quando Jéssica pergunta: “Você vai cuidar dele, mãe?”.
A mãe é, no fim e enfim, nomeada MÃE. No momento em que se implica no cuidado do neto, que abre mão do emprego para CUIDAR, Jéssica a nomeia.
Cada escolha, uma renúncia, e algumas são extremamente necessárias. Algumas são extremamente significativas e dão à vida um colorido novo, mais vivo, mais legítimo, mais real, menos ideal.
Val passa por uma transformação durante a trama. Se torna dona de si, escreve a própria história e re-começa. O filme me deu alguma esperança nos processos naturais da vida: sempre é tempo, ainda que pareça ter passado muito tempo.
“Que horas ela volta?” nos põe em contato com essa justa – e bela – assinatura na própria biografia, e nos leva para o lugar da questão, que, particularmente, acho muito digno. “O que estou fazendo?”, “A vida está passando ou eu estou passando pela vida?”.
Saindo do cinema, a amiga querida comentou, enquanto caminhávamos pela Paulista, que gostaria de assistir ao filme com a mãe dela, porque percebeu vários elementos ali que seriam bacanas se compartilhados com ela. Agora, ao escrever, me dou conta de que eu também gostaria de poder assistir ao filme com a minha mãe. Com aquela que exerceu a função materna muito bem, mas que também exerceu o que chamo de “função humana”, partindo deste mundo antes que eu estivesse preparada para me despedir (algum dia estaria?). Entendi um pouco sobre a função materna porque eu mesma tive que aprender a exercê-la.
O filme toca cada um de uma maneira peculiar, e muitas análises podem ser feitas daí. Pra mim, a diretora conseguiu, intencionalmente ou não, captar a essência e o perigo da comunicação inconsciente, principalmente esta que ocorre no meio das famílias, em que não se fala dos fatos embaraçosos, tristes ou trágicos que já aconteceram (além das questões sociais envolvidas). Concordo e entendo que alguns “segredos” são grandes demais para serem ditos, mas a questão ultrapassa o contar ou não contar algo. A questão vai no sentido de que os segredos, principalmente os não ditos, já estão sendo comunicados. E assim, se tornam presas fáceis para a repetição.
Enquanto há questão, há vida. E enquanto há vida, é sempre tempo de recomeçar e re-significar.