“Quero fazer tal coisa, mas não consigo!”
Quando um paciente senta na minha frente na terapia e diz essa frase, sinto nitidamente que estou falando com duas pessoas dentro de uma.

De fato é assim que interajo com as pessoas no consultório, como se fossem um feixe de personalidades que muitos chamam de “eu”. Com base na minha experiência clínica, digo que o “eu” sempre é um “nós” bem complexo.

Vejo a personalidade como uma embarcação de tripulação imensa, em que cada um gostaria de assumir o leme do navio e o levar para a direção que ele quiser, excluindo os outros presentes. Muitas vezes nossa identidade central se torna refém de um grupo mais forte de vozes que se apropria do leme e muda o rumo do navio para onde , por ser mais gostoso.

Vamos tomar uma situação típica de desilusão amorosa: o sujeito se encanta pela garota, se apaixona, mas o caminhar da situação não desemboca no destino que ele queria. Ele não passa de algumas ficadas. Ele quer se desapegar daquela menina pela qual se apaixonou, mas não consegue.

Houve uma divisão de vontades na embarcação. Uma parte acha que ele deve deixar a garota de lado, mas a outra adora devanear em sonhos e planos encantados onde tudo ali é perfeito: transas, conversas, celebrações, ideais e planos. Tudo imaginação megalomaníaca, mas quem liga para isso?

Eis o impasse. Se as duas partes querem e as duas têm propriedade no que falam, qual delas será ouvida pelo capitão do navio?

Vai depender do nível de maturidade geral de todos tripulantes. Se for interessante que toda a tripulação faça um esforço extra para remar com mais empenho até chegar à praia do desapego, ele vai conseguir direcionar gradualmente seus esforços para sua própria vida e seguir em frente.

No entanto, se for uma tripulação preguiçosa, (mal-)acostumada a receber tudo de bandeja, crente que a felicidade é resultado do acaso ou de atos mágicos, tudo será mais difícil. Essa tripulação orgulhosa de si não aceitará sair por baixo da situação e, para reaver o senso de masculinidade do garoto, irá ancorar toda inação futura numa fantasia muito distante.

Enquanto ele sonha com o ideal da mulher perfeita que gostaria de ter nos braços, sua vida ficou parada e exigiu pouco de todos os navegantes. É menos trabalhoso acusar a má sorte, o destino ou o nariz empinado da menina do que assumir que ele simplesmente não foi o eleito da vez e não há nada de errado ou mesmo de incomum nisso. Se quiser algo de verdade, precisará negociar com a voz orgulhosa de sua tripulação e pedir para que o libere de sair por cima.

Ele ficará paralisado enquanto enxergar uma vantagem no aparente sofrimento passivo do rapaz, especialmente em contraponto ao sacrificio de seguir em frente para novos desafios e potenciais novas frustrações.

Ou seja, quando ele diz “não consigo”, na realidade ele não quer abrir mão das vantagens de permanecer passivo naquele suposto sofrimento.

Eu quero, mas não consigo
“Mas eu QUERO!”
“QUERO emagrecer”, “QUERO satisfação profissional”, “QUERO um novo amor, mas não consigo!”

Besteira! Bobagem! Balela!

Você não quer deixar de comer bobagens, não quer se aperfeiçoar, ousar e brigar pela carreira desejada e não quer se aprimorar, se tornar companhia agradável e proporcionar boas experiências para a candidata.

Ou seja, não quer fazer o trabalho duro, silencioso, que dá resultados a longo prazo, sem alardes, sem recompensas imediatas, sem prazer sem fim e sem aplausos constantes. Em essência, não quer sair da infância emocional.

Há muitos marmanjos crescidos por aí brigando com suas vontades imperativas de crianças mal-acostumadas a comer só o que gostam, acordar na hora que quiserem e conviver com puxa-sacos que idolatram seus resultados medíocres. Vivem sem contrariedades em berço esplêndido.

O escritor Rubem Alves bem definiu a personalidade humana, dizendo que ela mais parece uma pensão. Consenso interno nunca existirá em um lugar assim.

Entre o querer e a concretização existem alguns anos de prática em negociação interna confrontada com uma realidade que não barganha com pequenos príncipes.

Esses imperadores sem reino vão passar a vida inteira querendo, querendo, querendo, mas não conseguindo nada, iludidos, dançando em uma festa imaginária ao som de uma música que só toca na cabeça deles.