Acredito que nascemos por algum motivo além da nossa compreensão racional, e um desses motivos, com certeza, é dar ao mundo o melhor de nós através da plena expressão do nosso “chamado mais profundo de alma”. É nosso presente ao universo, em agradecimento ao presente que é estar vivo.

Hoje, fiquei sabendo da morte de uma pessoa que, mais do que um médico, era um zelador do bem estar da minha família, uma presença afetiva da minha vida toda, de importância pela atuação profissional e pessoal, alguém que nos acompanhou de forma carinhosa, próxima, amorosa, por mais de 30 anos. Perdemos um médico, uma pessoa de confiança, um amigo, acima de tudo.

Mas quero celebrar sua vida.

Das inúmeras prosas que trocávamos no consultório, pude perceber que enfrentou toda a sorte de dificuldades para seguir no sonho de ser médico, e mais tantos para continuar na profissão, além de inúmeros desafios em sua trajetória de vida. Mas ele, muito mais do que a esmagadora maioria das pessoas que conheço, foi firme no seu verdadeiro propósito. Sua missão era curar pessoas, aplacar sua dor, seu sofrimento, da forma mais humana e dedicada que se possa imaginar.

Gosto de uma fala de Prem Baba (se não me equivoco, no livro “Propósito”), em que ele trata de uma forma singela, mas muito poderosa o tema desse “dom”, desse “chamado”: o quão egoísta, quão “desperdiçante” é não usar seu dom, não o colocar a serviço da humanidade… e, por outro lado, o quanto esse “chamado” em plena expressão é um verdadeiro ATO DE AMOR.

Aquilo ressoou como duzentos sinos em mim. E vendo a trajetória do meu querido médico, a ressonância dos badalos parece ter finalmente encontrado um alto falante para ecoar ainda mais firme.

Acredito que cada um de nós nasce com algum (ou alguns) chamados, que se conectam com dons e aptidões, que se costuram com mais algumas inclinações e facilidades, e se arrematam com conhecimentos e empenho.

Toda essa rica colcha de retalhos geralmente vai sendo cerzida, estejamos ou não cientes de sua importância, de forma natural, orgânica, como algo que simplesmente “tem que ser”.

Ignorar isso é jogar fora todo um complexo de sincronicidades e talentos que poderiam trazer ao mundo algo maior do que você mesmo, aquilo que fica mesmo depois que você se torna apenas memória: um legado de amor para o mundo.

Ele, ele sim seguiu sua vocação. Vivia, respirava, dormia e acordava a medicina. Suas férias eram quase sempre ligadas a congressos, suas folgas quase sempre para estudos, suas consultas não eram aquelas de sentir-se como numa linha de produção, era tudo com muito esmero, paixão, dedicação. Ele unia o conhecimento de uma vida inteira de estudos e prática, o amor e a crença na profissão que exercia, a vocação e o dom, indescritíveis, para cuidar de pessoas.

É assim, quando ouvimos os clamores dos nossos dons e os seguimos:

– Nossos passos são uma representação de amor na terra;
– o agir torna-se devoção, uma energia que transcende nós mesmos e contamina a todos;
– nossa vida profere-se numa harmônica oração, a existência aproxima-se do divino. Inclusive, a etimologia da palavra “vocação”, do latim “vocare”, traz a ideia de um “chamado”, como uma voz incontestável que conclama a seguir aquele caminho.

Acredito que nascemos por algum motivo além da nossa compreensão racional, e um desses motivos, com certeza, é dar ao mundo o melhor de nós através da plena expressão do nosso “chamado mais profundo de alma”. É nosso presente ao universo, em agradecimento ao presente que é estar vivo.

Quando trilhamos o caminho alinhado ao nosso propósito, tudo flui como um rio, natural, potente, orgânico, irrefreável.

Quando caminhamos de mãos unidas ao chamado, nosso legado é um profundo impacto em quem cruzou nosso caminho, que puderam usufruir ou ao menos se inspirar pela harmônica canção da nossa existência em consonância com o ritmo da alma.

Se permanecermos firmes na vocação, nosso motivo de estarmos vivos, nossa memória repercutirá como um enorme coro, diante da potência criadora, transformadora e amorosa que exala de uma existência vibrada com nossos dons.

E sua marca, Doutor, com uma vida toda vivida em atos de puro amor e dedicação, nunca se apagará. Pois sua existência foi maior do que sua própria vida. Ela persistirá dentro de cada um que teve a honra de conhecê-lo. E eu não posso pensar numa forma mais bonita de se ter vivido.

Marian Koshiba








Formada em Direito, escritora por necessidade de alma, cantora e compositora por paixão visceral. Só sabe viver se for refletindo sobre tudo, sentindo o mundo à flor da pele. Quer transmitir tudo que apreende (e aprende) por todas as formas criativas possíveis.