Em menos de duas décadas, Portugal passou de um país inundado por uma epidemia de uso de heroína a um país com uma das menores taxas de infecção por HIV, overdose e crimes relacionado às drogas.

Como? Descriminalizando todas – sim, todas – as drogas ilícitas no país inteiro.

A política radical de Portugal está funcionando. Por que o mundo todo ainda não a copiou, então?

A epidemia: o início

No fim dos anos 1980, as drogas se tornaram um problema imenso em Portugal. Do dia para a noite, a costa do Algarve tornou-se uma das capitais de substâncias ilícitas na Europa: um a cada 100 portugueses lutava contra o vício em heroína, sendo que os números eram maiores no sul do país.

Manchetes na imprensa levantavam alarme sobre mortes por overdose e aumento do crime. A taxa de infecção por HIV em Portugal tornou-se a mais alta da União Europeia. O país estava em estado de pânico.

Havia muita ignorância sobre o assunto naquela época. Portugal havia passado quarenta anos sob o regime autoritário de António Salazar, que suprimiu a educação, enfraqueceu as instituições e aumentou o abandono escolar numa estratégia destinada a manter a população dócil.

O país ficou fechado para o mundo exterior; as pessoas perderam a cultura de experimentação e expansão da mente dos anos 1960. Quando o regime terminou abruptamente em um golpe militar em 1974, Portugal foi subitamente aberto a novos mercados e influências. Sob o antigo regime, a Coca-Cola era banida e possuir um isqueiro exigia uma licença. Quando a maconha e depois a heroína começaram a imergir em Portugal, o país estava totalmente despreparado.

Como o problema foi resolvido?

Quase duas décadas depois, em 2001, Portugal tornou-se o primeiro país a descriminalizar a posse e o consumo de todas as substâncias ilícitas.

Em vez de serem presos, os indivíduos pegos com drogas para uso pessoal passaram a receber apenas uma advertência, uma pequena multa ou a serem instruídos a comparecer perante uma comissão local – um médico, um advogado e um assistente social – para conversar sobre tratamento, redução de danos e serviços de apoio disponíveis para eles.

Graças a essa mudança, a crise de opioides logo se estabilizou no país. Nos anos seguintes, houveram quedas drásticas no uso problemático de drogas, taxas de infecção por HIV e hepatite, mortes por overdose, crimes relacionados às drogas e taxas de encarceramento. A infecção pelo HIV despencou de uma alta histórica em 2000 – 104,2 novos casos por milhão – para apenas 4,2 casos por milhão em 2015.

Os dados por trás dessas mudanças foram estudados e citados como evidência por movimentos em todo o mundo. A história é certamente mais complexa do que parece, no entanto. É preciso voltar no tempo para entendê-la.

Drogas: a inútil demonização

Álvaro Pereira trabalhava como médico em Olhão, no sul de Portugal, no fim dos anos 1980. “As pessoas estavam se injetando na rua, em praças públicas, em jardins”, Pereira contou ao The Guardian. “Naquela época, não passava um dia em que não houvesse um roubo em uma empresa local”.

Pereira lidou com a crescente onda de vício portuguesa da única maneira que sabia: tratando um paciente de cada vez. Sem querer, tornou-se um especialista na área, trazendo para trabalhar consigo um outro médico jovem: João Goulão.

Nos primeiros dias do pânico em Portugal, o primeiro instinto do Estado foi atacar. As drogas e os usuários de drogas eram vistos como malignos. O governo português lançou uma série de campanhas nacionais que eram menos “Apenas diga não” e mais “Drogas são satanás”.

Abordagens de tratamentos informais e experimentais começaram a aparecer em todo o país, já que médicos, psiquiatras e farmacêuticos decidiram trabalhar independentemente para lidar com os distúrbios de dependência de drogas batendo em suas portas, às vezes arriscando ostracismo ou prisão por fazer o que acreditavam ser o melhor para seus pacientes.

Mudança de pensamento

O primeiro chamado oficial para mudar a legislação antidrogas de Portugal veio de Rui Pereira, um ex-juiz que realizou uma revisão do código penal em 1996.

Ele descobriu que a prática de prender pessoas por usar drogas era contraproducente e antiética. “Meu pensamento logo de cara foi que não era legítimo que o Estado punisse os usuários”, disse ao The Guardian.

Naquela época, cerca de metade das pessoas na prisão estavam lá por motivos relacionados às drogas, e a epidemia, segundo o ex-juiz, era considerada “um problema insolúvel”. Ele recomendou que o uso de drogas fosse desencorajado sem impor penalidades, ou afastar ainda mais os usuários. Suas propostas não foram adotadas imediatamente, mas não passaram despercebidas.

Em 1997, depois de 10 anos trabalhando com viciados ao lado de Álvaro Pereira, Goulão foi convidado para ajudar a projetar e liderar uma estratégia nacional para lidar com as drogas. Ele reuniu uma equipe de especialistas para estudar potenciais soluções para o problema. As recomendações resultantes, incluindo a total descriminalização do uso de drogas, foram apresentadas em 1999, aprovadas pelo conselho de ministros em 2000, e um novo plano de ação nacional entrou em vigor em 2001.

Os pilares da descriminalização

Hoje, Goulão é o embaixador global mais ativo da descriminalização. Ele viaja constantemente, convidado repetidamente para apresentar os êxitos do experimento de Portugal para autoridades de todo o mundo, da Noruega ao Brasil, que estão lidando com situações desesperadas em seus próprios países.

“Esses movimentos sociais levam tempo”, disse Goulão. “O fato de que isso aconteceu em uma sociedade conservadora como a nossa teve algum impacto”.

A política de Portugal baseia-se em três pilares: que não existe droga leve ou pesada, apenas relacionamentos saudáveis e não saudáveis com drogas; que o relacionamento insalubre de um indivíduo com as drogas muitas vezes esconde relacionamentos desgastados com entes queridos, com o mundo ao seu redor e consigo mesmo; e que a erradicação de todas as drogas é um objetivo impossível.

Até por conta desse último fator, existem programas voltados para usuários recreativos em Portugal também. Projetos são estabelecidos em festivais, bares e festas para testar substâncias em busca de potenciais perigos. Muitos ativistas portugueses creem que, se as drogas fossem legalizadas, não apenas descriminalizadas, essas substâncias seriam controladas com os mesmos padrões rigorosos de qualidade e segurança que alimentos, bebidas e medicamentos, o que seria muito melhor.

Por que a maioria das pessoas que usam drogas não se viciam?

Portugal é certamente um exemplo de sucesso no combate as drogas, justamente porque não está combatendo, mas sim dialogando com os usuários. Sem usuários, não há tráfico. A “guerra às drogas” de outros países – por exemplo, EUA e Brasil – tem se mostrado infrutífera até agora.

É enganoso, no entanto, creditar os resultados positivos inteiramente a uma mudança na lei, ou seja, à descriminalização das drogas.

A descriminalização e a notável recuperação de Portugal não poderiam ter acontecido e durado por tantos governos sem uma enorme mudança cultural, na forma como o país enxerga as drogas e o vício. De muitas maneiras, a lei foi apenas um reflexo das transformações que já estavam acontecendo nas clínicas, nas farmácias e em torno das mesas de cozinha de todo o país.

Mais: essa mudança cultural só foi possível porque a epidemia de heroína afetou não apenas as classes mais baixas ou as minorias de Portugal, mas também as classes média e alta. “Houve um momento em que você não encontrava uma única família portuguesa que não fosse afetada. Toda família tinha seu viciado. Isso era universal de uma forma que a sociedade sentiu que tinha que fazer alguma coisa”, sugere o Dr. Álvaro Pereira.

Quando o resto do mundo vai agir?

É importante notar que Portugal estabilizou sua crise de opioides, mas não a fez desaparecer. Enquanto as taxas de morte, encarceramento e infecção relacionadas às drogas despencaram, o país ainda precisa lidar com as complicações de saúde do uso problemático de drogas a longo prazo. Doenças incluindo hepatite C, cirrose e câncer de fígado são um fardo para um sistema de saúde que ainda está lutando para se recuperar de recessões e cortes.

Apesar das reações internacionais entusiasmadas ao sucesso de Portugal, os defensores locais da redução de danos têm se frustrado com o que eles veem como estagnação e inação governamental desde que a descriminalização entrou em vigor.

Se Portugal se estagnou, o resto do mundo nem começou a se mexer ainda. Apesar dos resultados tangíveis alcançados pelos portugueses, outros países mostram-se relutantes em seguir seu exemplo. A ONU discute globalmente o problema das drogas a cada dez anos, abordando as tendências de dependência, infecção, lavagem de dinheiro, tráfico e violência de cartéis, mas todos os esforços para examinar modelos alternativos (como a descriminalização) acabam bloqueados pela maioria das nações.

Felizmente, a última reunião em 2016 produziu alguns desenvolvimentos promissores: o Chile e a Austrália abriram seus primeiros clubes de cannabis medicinal; alguns estados dos EUA legalizaram a cannabis medicinal e até a recreativa; a Dinamarca criou a maior instalação de consumo de drogas do mundo e a França abriu sua primeira; a África do Sul propôs a legalização da cannabis medicinal; o Canadá delineou um plano para legalizar a cannabis recreativa a nível nacional; e Gana anunciou que iria descriminalizar todo o uso de drogas pessoais.

Hoje, a descriminalização parece muito difícil e distante na maior parte do mundo. Mas, se um Portugal católico isolacionista e conservador pode se transformar em um país onde o casamento entre pessoas do mesmo sexo e o aborto são legais e onde o uso de drogas é descriminalizado, uma mudança mais ampla de atitudes é certamente possível em outros lugares também. É preciso querer a mudança para consegui-la, porém.