Quando o livro Garota Exemplar, de Gillian Flynn, foi lançado em 2012, com seu conto intoxicante sobre um casamento que não deu certo e sua forte crítica ao estereótipo da “garota cool”, o terreno ficou preparado para muitos outros suspenses inéditos serem divulgados como “o próximo Garota Exemplar”.

A Garota no Trem, romance de mistério de Paula Hawkins (lançado no Brasil pela Record), foi honrado com tais comparações em sua chamativa trajetória ao primeiro lugar nas listas de bestsellers.

É uma comparação justa: os dois lidam com a dinâmica traiçoeira do casamento e os efeitos destrutivos da misoginia internalizada, e, claro, destacam narrativas bem pouco confiáveis.

O sucesso de A Garota no Trem, lançado apenas alguns anos depois de Garota Exemplar, sugere que leitores não se cansaram de histórias que conseguem combinar suspense com sérias críticas às normas culturais — particularmente aquelas que colocam sobre as mulheres um peso danoso.

Em um gênero frequentemente dominado por homens, espiões formais e escritores, como Elmore Leonard e Stieg Larsson, a recente onda de suspenses focado nas mulheres nos mostra um pouco da sede por drama descoberto dentro da vida no lar e a promessa do gênero de desenterrar as raízes da dor e do trauma feminino.

“A garota no trem” é Rachel, uma mulher solitária, divorciada e alcoólatra que anda de trem diariamente, indo e voltando para Londres, com a esperança de conseguir esconder sua demissão da colega de apartamento. Todos os dias, o trem passa cruelmente pela casa onde ela uma vez viveu com seu adorado ex-marido, Tom.

Ele ainda mora lá com a sua mulher atual e a filha. Rachel direciona seu foco nas casas um pouco mais adiante, onde outro jovem casal mora, e inveja a aparente abençoada parceria dos dois. Certo dia, ela fica chocada com o que vê na casa desse casal e logo depois a esposa desaparece.

Rachel, convencida que o evento que testemunhou é relevante ao caso é rapidamente atraída ao mistério, mas o alcoolismo debilitante e os apagões de memória causados pela bebedeira não permitem que ela seja uma testemunha confiável para as autoridades e até para si mesma.

A narração de Rachel — muitas vezes difícil de ler, por vermos sua luta com muitas recaídas e como ela se agarra desesperadamente às memórias escondidas na névoa de muitas noites de bebedeira — se alterna com as narrativas das outras duas mulheres da história.

Megan, a esposa desaparecida, conta uma história no início, uma que complica o sonho dourado de Rachel sobre sua vida com o seu marido Scott. Compulsivamente desleal, cheia de culpa e perdida, Megan parece ser o problema na família perfeita que o casal poderia ter tido.

Anna, a nova esposa de Tom, é um contraste impressionante em relação às outras mulheres; vaidosa, convencida e cheia de si, ela sente falta de ser a amante divertida e sexy que era, mas sente-se satisfeita de ter triunfado. Seu amor pelo filho e o medo da imprevisível Rachel dá uma certa intensidade ao seu personagem superficial.

No entanto, logo fica claro que os apagões de Rachel e sua memória duvidosa estão escondendo algo mais profundo do que algumas noites irresponsáveis e ficamos imaginando quem entre os personagens envolvidos tenuamente estão a salvo dos segredos que escondem suas bebedeiras.

Hawkins mantém a tensão elevada, até o seu final talvez levemente dramático — mas se a cena final é um pouco absurda, a recompensa, pelo menos, é fantástica, e responde a cada momento do delicioso suspense construído no decorrer da história.

O romance de Hawkins apareceu junto a uma enxurrada de novos suspenses literários feitos por mulheres e sobre mulheres. Unbecoming, de Rebecca Scherm, acompanha a vida de uma restauradora de antiguidades americana em Paris que retorna ao lar com um segredo cheio de culpa. Her, de Harriet Lane, mostra a amizade que cresce lentamente entre duas mulheres, uma delas parece ter um motivo oculto sinistro.

Entretanto, o livro de Hawkins é o mais habilmente executado, pois tem personagens reais e comoventes, além de viradas verdadeiramente arrebatadoras.

Um artigo de 2013 do Guardian que desfaz a popularidade de Garota Exemplar notou, “muitos desses suspenses ocorrem em famílias ou em casamentos, mas poucas são tão hábeis a ponto de habitar dois gêneros ao mesmo tempo”.

A Garota no Trem, da mesma forma, não decepciona nem com suas grandes revelações nem poupa com o desenvolvimento dos personagens — a trama e os arcos dos personagens estão tão entrelaçados que o poder de cada um é reforçado.

O livro de Gillian Flynn também capturou de forma significativa um pouco da zeitgeist feminista. As mulheres sabiam que Amy Dunne era uma sociopata e mesmo assim concordaram com satisfação quando ela cuspiu que as “garotas cool” nunca sentem raiva; elas somente sorriem de forma amável e constrangida e deixam seus homens fazer o que querem”.

As mulheres cansadas de serem comparadas com Jennifer Lawrence e colegas, com seus interesses amorosos, tomando cervejas e aplaudindo a afirmação de Amy que as mulheres têm o direito de fazer demandas e ter interesses contrários aos de seus namorados.

Sua trama de vingança fria, é claro, sugere que ela era louca, mas pelo menos ela era forte, astuta e no controle.

A Garota no Trem quer que pensemos sobre porque nós nos apressamos a desprezar as mulheres que parecem destruídas e confusas, quando essas qualidades são com frequência sinais de uma história dolorosa.

Embora Garota Exemplar tenha lutado contra clichês femininos acomodando a vítima ou o interesse amoroso com um vilão calculador, A Garota no Trem assume um ângulo menos desafiador.

A Rachel se mostra patética — as mulheres não vão querer imitá-la — mas o posicionamento mestre de Hawkins de uma narrativa involuntariamente pouco confiável evocando réplicas de abuso e trauma é uma forma igualmente poderosa de explorar a marginalização das mulheres.

Bem depois de À Meia Luz o problema de como é fácil para as mulheres serem manipuladas a questionar sua própria percepção — e o quanto nós somos profundamente socializadas a questionar a nós mesmas e confiar na autoridade masculina— permanece.

A Garota no Trem quer que pensemos sobre porque nós nos apressamos a desprezar as mulheres que parecem destruídas e confusas, quando essas qualidades são frequentes sinais de uma história mais dolorosa.

A Garota no Trem, assim como a Garota Exemplar, explora o poder psicológico existente nas novelas de suspense em revelar lados desconhecidos de nós mesmas aos leitores — uma força que é peculiarmente bem-adequada a instigar os estereótipos e as construções sociais opressivas.

Está claro que autores e editores viram o potencial; A Garota no Trem, Her, e Unbecoming são apenas algumas das novelas de suspense focadas no mistério ou suspense e que serão lançadas em 2015 e muitas delas superam meramente alguns procedimentos para se aprofundarem em pressões psicológicas e armadilhas enfrentadas pelas mulheres hoje.

Ao usar nossos pressupostos sobre como as mulheres podem e devem se comportar para conseguir viradas chocantes na trama ou ao empurrar esses pressupostos ao extremo lógico, o suspense pode usar as convenções do gênero para comprometer convenções sociais.

Nessas novelas, dentro do coração do apaixonante mistério, os perigos inerentes da feminilidade na vida moderna são gentilmente desenterrados, desempoeirados e apresentados para nós para que vejamos claramente.

Apesar do progresso conquistado pelas mulheres na nossa sociedade no último século, está claro que muitas de nós ainda têm fome da explosão dramática de sexismo existente ao nosso redor.

O filme baseado no livro de Hawkins estreia nos cinemas brasileiros em _ de outubro. Assista ao trailer abaixo: