Eu sei o que você vai comentar aqui nesse texto. Eu sei. Você vai se vangloriar por não assistir programa X ou Y na TV e que por isso você é muito mais inteligente e superior do que quem assiste.

Ok, nós já sabemos da sua invejável superioridade intelectual, mas podemos deixar o seu ego gigantesco de lado só por um momento e falarmos sobre um assunto que é de interesse de todos, inclusive de você que só tem TV em casa para apoiar o copo em cima?

O texto não e sobre a sua TV. Não é sobre o Big Brother. Não é sobre o participante Marcos e nem sobre a participante Emilly, que ilustram a foto do post. O texto é sobre nós – todos nós.

Para quem passa seu tempo livre apenas lendo Tolstoi e não tem tempo para realitys, vou explicar o que aconteceu:
Marcos é um participante do reality show de maior audiência e sucesso da história da TV brasileira. Ele mantém um relacionamento com a participante Emilly, a qual possuo inúmeras críticas mas vou me abster de comentários, pois como dito a cima, esse não é o assunto desse texto.

Marcos é 20 anos mais velho que Emilly e desde o início parece nutrir um certo prazer em tratá-la como uma criança que precisa ser guiada, educada e ensinada.

E por quem? Por ele, é claro.

Ele se vê como mestre, professor, guia, orientador e pai da menina com quem escolheu, por vontade própria, se relacionar.

Doentio, eu sei, mas o pior é que não para por aí.

Com o passar do tempo de confinamento, Marcos começou a apresentar um comportamento agressivo, abusivo e ameaçador.
Não foram raras as vezes em que demonstrou total descontrole apontando o dedo no rosto não só de Emilly como de outros participantes, gritando e chorando de maneira desequilibrada, apertando forte e até beliscando seu braço, imprensando-a contra a parede, urrando inúmeros “cala a boca”, e por aí vai o show de horrores.

Um comportamento que infelizmente não é raro em nossa sociedade, mas que aceitamos e compactuamos diariamente.
Prova disso são os 77% de votos que mesmo depois de tantas demonstrações explícitas de abuso e agressividade, deixaram Marcos, que estava no paredão, dentro da casa.

Mais da metade da nossa sociedade não apenas ignorou, mas premiou tal comportamento.

E não devemos ignorar nem nos eximirmos dessa responsabilidade.

Podemos não ter votado, mas esse problema também é nosso. Porque nós temos sim a ver com isso.

Votação aberta para o público em um reality show nada mais é do que um espelho do que a sociedade pensa e de quais valores mantém e de quais rejeita.

Queira você admitir ou não, reality show é um puta estudo sociológico.

Ano passado, no BBB 16, o participante Laércio, assumiu possuir interesse amoroso e sexual por meninas menores de idade. O resultado de tais declarações foi a sua eliminação por voto popular. Ou seja, o brasileiro deixou bem claro que rejeita veemente a pedofilia (não entrando em termos técnicos).

Mas já houve época em nossa sociedade onde a pedofilia era aceita, era normal, era corriqueira.

Mudamos. Toda sociedade tende sempre a evoluir. Às vezes demora, às vezes damos um passo para frente para posteriormente darmos dois para trás, mas é inevitável que uma hora a evolução siga seu caminho natural e nos leve junto. Lutar contra a evolução de uma sociedade é uma luta perdida. Uma hora ela sempre acontece.

Pedofilia é um tópico de senso comum: não é aceita. Sob nenhuma circunstancia, desculpa ou motivo.
Nos espantamos com casos de pedofilia, abominamos com todas as nossas forças, e não inventamos desculpas para legitimá-la.

É errado, sabemos disso, e ponto final.

Assim como também abominamos, por exemplo, o racismo.

Os racistas não são socialmente aceitos ou tolerados. Eles existem, mas agem em anonimato, escondidos, acoados, pois sabem que não serão aceitos sob nenhuma circunstância.

E quando eles agem, a nossa sociedade se une em um só coro para clamar por justiça.

Racismo não está mais sendo aceito nem quando explícito, nem quando disfarçado, nem quando sutil, nem quando em piada, nem quando em forma alguma.

Não estou dizendo que não exista mais racismo, infelizmente ainda não chegamos a esse ponto de evolução, mas já é de consentimento geral que temos que chegar lá.

Sabemos que é errado. E só o fato de sabermos isso, sem que tenhamos que participar de debates sociais ridículos de convencimento do óbvio, já é um grande passo.

Mas infelizmente nossa sociedade ainda não chegou nesse ponto em outros tópicos como por exemplo a homofobia, o machismo e é claro, o abuso nos relacionamentos.

Relacionamentos abusivos não são um fato social recente. Nossas bisavós foram vítimas diretamente, nossas avós, nossas mães, e nós, ao menos uma vez na vida, também. E provavelmente nossas filhas e netas também serão, em graus mais brandos, esperamos.

Talvez os abusos tenham vindo em forma de agressões físicas, psicológicas ou sexuais. Talvez em forma de insultos, humilhações e chantagens. Ou outras práticas abusivas.

Gostamos de declarar, como sociedade, que não toleramos o abuso contra a mulher, principalmente quando o abuso se trata de agressão física. Temos até lei contra isso. Mas será que não toleramos mesmo?

Dado Dolabella, flagrado em vídeo agredindo a ex-namorada Luana Piovani e a camareira Esmeralda Honório, poucos meses depois foi premiado com 2 milhões de Reais em outro reality show também por voto popular.

Bruno, ex-goleiro do Flamengo, acusado de assassinar a ex-namorada grávida, Eliza Samúdio, e de ocultar seu corpo, ao sair da prisão, foi rapidamente contratado por um time de futebol.

Jogador de futebol é uma profissão de glamour, de prestígio, de idolatria e admiração, e ela foi ofertada a um assassino confesso, com direito a foto sorridente na Internet e assedio dos fãs durante os treinos.

O cantor Chris Brown, mesmo após confessar judicialmente e publicamente ter agredido a então namorada e também cantora Rihanna, lançou mais três álbuns, atuou em três filmes e uma série, e ainda foi indicado e também vitorioso em diversas premiações como o Grammy e o Billboard Music Awards.

Agora imagine: será que se todos eles, ao invés de terem abusado e agredido suas namoradas, tivessem cometido, por exemplo, crime de pedofilia, ainda teriam tido tamanho sucesso e aceitação social?
Eu aposto que não.

Pois é, infelizmente ainda toleramos sim.

O abuso nos relacionamentos ainda é tolerado e aceito até mesmo em casos graves como os de agressão e homicídio, o que dirá então em casos apenas de abuso psicológico e sexual.

Aí, meu amigo, a vítima está por conta própria, quando não é, mesmo após ter passado pelos abusos, acusada de ser a culpada por eles.

Ninguém quer se associar, sob nenhuma circunstância a um pedófilo, a um ladrão, a um racista, mas quando se trata de um abusador, a sociedade não se importa tanto assim.

Agressores e abusadores não agem em anonimato. Eles não agem nas sombras. Eles não se escondem. Eles agem na cara de todos, sem medo ou vergonha, justamente porque sabem que a sociedade ignora, compactua e diminui suas práticas abusivas.

Eles podem ser abusivos, porque mesmo que sofram alguma consequência, tudo bem. A sociedade uma hora esquecerá e eles levarão suas vidas normalmente, inclusive sendo premiados e vangloriados futuramente.

O crime acaba compensando.

Então quando a vizinha aparece de óculos escuros após uma noite de gritaria no prédio, escolhemos ignorar sobre o pretexto de não ser da nossa conta e no dia seguinte estamos dando bom dia e convidando o vizinho agressor para tomar café e bater papo.

Quando o amigo faz piada depreciando a própria namorada, a diminui, a envergonha constantemente inclusive em público e a controla como se fosse sua propriedade, escolhemos não nos importar. Diminuímos a seriedade com que os abusos deveriam ser tratados e seguimos apenas como telespectadores omissos.

Quando um familiar humilha, maltrata e ameaça a própria esposa chantageando-a psicologicamente e financeiramente mantendo-a sem direito de se quer deixá-lo, escolhemos nos calar e ignorar o fato enquanto sorrimos orgulhosos lado a lado para a linda foto de família.

Quando um ex-namorado com dor de cotovelo divulga fotos íntimas da ex-namorada por rancor e vingança, corremos para ver as imagens, fazemos piadas, mandamos para o grupo do whatsapp, e escolhemos, ao invés de denunciar e repreender o abusador, humilhar e depreciar ainda mais a mulher.

Soltamos frases como “não quero escolher lados, gosto dos dois”, “ela deve ter provocado”, “ele estava estressado”, “não é da minha conta”, “ela mereceu”, “ele só é um pouco ciumento”, “em briga de marido e mulher não se mete a colher”, “tem que ouvir o lado dele”, “ela é louca”, “se fosse tão ruim assim ela já o teria deixado”, como forma de diminuir e não levar a sério algo que não é estresse, ciúmes, opinião, briga e as vezes nem escolha, mas sim um relacionamento abusivo.

Escolhemos conscientemente nos cegar em relação ao relacionamento abusivo alheio, baseando-nos em nossos próprios critérios de intensidade e importância, e assim limpamos a nossa consciência sem medo ou vergonha por negligenciarmos a dor e o sofrimento de outra pessoa.

Um dia a evolução nos levará ao ponto onde não permitiremos nenhum tipo de abuso; nem um pouquinho, nem um cadinho, nem rapidinho, mas enquanto esse dia não chegar ainda passaremos a mão na cabeça e premiaremos muitos abusadores, sejam eles na casa ao lado, na rua, no trabalho, na roda de amigos, na família, no meio artístico, ou no programa de TV.

Eu sei que um dia fatalmente chegaremos lá, mas será que ainda falta muito? Torço para que não.








Aprendeu a ler antes mesmo de conseguir segurar um livro e descobriu neles o que queria fazer para o resto da vida. Além do blog cuida de 3 gatos e é autora do livro “Fique com alguém que não tenha dúvidas”, lançado pela editora Única.