Ao entrar naquele apartamento, localizado no quinto andar de um edifício cuja identidade é impossível se estabelecer devido à sua estrutura antiga decorada com bonitos azulejos coloridos em tons de um opaco amarelo, mas com uma fachada de vidro com espelho d’agua na frente inspirando modernidade, a um quarteirão da Avenida Paulista, eu procurava por algum vestígio de mim mesma. Fazia oito meses que eu tinha partido para a Amazônia e nunca mais pisado naquele taco preservado e invejado pelos afoitos, como eu, ao considerado antiquado.

Sabia que ali não estaria mais o sofá que por anos foi apelidado carinhosamente de ninhão — sim, um grande ninho — por mim e pelo meu ex-marido. Assim como a geladeira, o microondas e a cama, o sofá também havia sido vendido enquanto eu ainda alternava a minha vida sem saber se navegaria pelo Rio Negro ou pelo Solimões. Naquela época eu só tinha uma certeza: continuaria o ano de 2017 pela Amazônia. Ainda tinha muito a aprender a como ser gente com os povos da floresta e com a imensidão sufocante do seu verde gotejante.

Abri a porta com certa ansiedade. Entrei devagar e em silêncio. Percorri os cômodos, que aquela altura já apresentavam poucos resquícios, mas alguns indícios, de que alguém ali teve uma vida, que foi intensa com tudo o que ela tem de bom e de não tão bom. Abri o armário onde ainda estavam minhas roupas, que se aglomeravam como presos numa cela sem nem um único espaço para respirar.

Passei a mão por aqueles cabides e nem parecia que a moradora daquele apartamento era eu. Não me reconheci naquelas camisas de botão. Nem nas calças sociais. Nem mesmo nos blazers coloridos. Muito menos nos pequenos saltos dos meus sapatos que um dia usei por considerar que o mundo corporativo aquilo exigia. Aquela Maria Fernanda ali já não era mais eu.

Separei algumas peças e doei todo o resto. Refugiados ganharam de roupas de cama a copos e talheres. Amigas também usufruíram de objetos que eu deixaria para trás. Instituições de caridade se encarregaram de levar aquilo que eu já não sabia mais como é que eu pude acumular. Juntar tanto. Quanta energia desprendida em coisas supérfluas e desnecessárias.

Lembro-me de em determinado momento, sentada no chão, envolta em poeira, em lixo e em amontoados de roupas divididas em sacos pretos de cem litros pensar por que, por que ter tanto? Havia chegado a hora de ser livre. Coisas aprisionam a gente. E não quero grades. Prefiro a liberdade proporcionada por uma canoa.

Entre os objetos que guardava no fundo da gaveta por carinho, apreço ou gratidão, os ingressos para o Spartacus, do balé Bolshoi, que um dia foi comprado para irmos em família. Meu pai aguardava ansioso por aquele dia, como se fosse um sonho que realizaria. Mas esse dia nunca chegou, pois ele morreu antes. E eu me algemei aqueles ingressos como se precisasse deles para lembrar da existência do meu pai.

Agora sem uma casa para continuar a armazená-los como um tesouro, eles foram rasgado em pedaços. Inconscientemente pedi desculpas ao meu pai por aquele ato. Sei que não era o caso. Ele teria feito o mesmo caso a morta fosse eu.
Atirei no mesmo saco de lixo algumas fotografias com meu ex-marido, por quem eu nutro o amor maior do mundo. Também tinha medo que a nossa história se apagasse com o fim daquelas imagens. Assim como o meu pai, as nossas lembranças permanecerão sempre presentes, na minha alma, no meu coração, nos meus pensamentos. Estava mais do que na hora de eu aprender que o amor não está nas coisas, mas na gente. Mas senti cada rasgo daqueles ingressos e daquelas fotos como se fosse um rasgo no meu próprio peito. Confesso.

Aquele apartamento alugado não existe mais. E nem o que tinha dentro dele. Dentro de mim também já não habita mais a mesma pessoa. Depois de um mês e meio em São Paulo, estou de volta à floresta para mais uma temporada daquilo que eu ouso dizer ser a maneira mais sublime de acumular coisas. Neste caso, estou acumulando milhas internas em uma jornada Maria Fernanda adentro. E talvez esse seja o maior vestígio de mim mesma que eu poderia ter encontrado.

Estou indo para uma aldeia indígena e fico uns dias offline. Apenas lembrando que na floresta não tem wi-fi, mas a conexão é muito melhor. Acreditem. Prometo voltar com fotos e novas histórias.








Maria Fernanda é jornalista e está em uma jornada Amazônia adentro para conhecer e compartilhar as histórias dos povos da floresta. Escreve para o Jornal Estado de São Paulo.