Não é difícil ter chefa mulher, difícil mesmo é ser mulher

Com licença poética

Quando nasci um anjo esbelto,

desses que tocam trombeta, anunciou:

vai carregar bandeira.

Cargo muito pesado pra mulher,

esta espécie ainda envergonhada.

Aceito os subterfúgios que me cabem,

sem precisar mentir.

Não sou feia que não possa casar,

acho o Rio de Janeiro uma beleza e

ora sim, ora não, creio em parto sem dor.

Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.

Inauguro linhagens, fundo reinos

— dor não é amargura.

Minha tristeza não tem pedigree,

já a minha vontade de alegria,

sua raiz vai ao meu mil avô.

Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.

Mulher é desdobrável. Eu sou.

Adélia Prado, Bagagem

Recentemente, em um programa de televisão, conhecemos Dayse, que disputava a semifinal do Masterchef Profissionais com outros dois candidatos, homens. Dayse se destacou em diversas provas, demonstrou aptidão plena para a vitória no programa, mas sofreu alguns ataques machistas de seus oponentes.

Um dos candidatos disse para Dayse “varrer o chão”, o mesmo que disse que trabalhar com mulher era mais “delicado” porque “a mulher é mais frágil”. Outro afirmou “quero derrubar a Dayse de qualquer jeito hoje”. Quanto ao comportamento dos demais candidatos, Dayse disse “acho que na cabeça de um homem ir para a final com um homem é ‘ok’, mas ir para a final com uma mulher… a possibilidade de perder para uma mulher acho que pega para eles”.

Dayse passou da semifinal e agora disputa a final com um homem, com números semelhantes de vitórias e derrotas ao longo do programa. De igual para igual.

Tais fatos nos trazem algumas reflexões acerca da aceitação da mulher em determinadas funções ou papéis na sociedade. Apenas uma mulher em posição de destaque, cargo de chefia, situação de exposição, sabe como é diariamente lidar com o machismo. Ele às vezes é sutil, revela-se em um olhar assustado. Outras vezes resulta em comportamentos agressivos ou irônicos. Mas todas as vezes expressa algo evidente: a aceitação da mulher como protagonista ainda é um tabu da sociedade contemporânea.

É cansativo lançar-se diariamente numa sociedade em que alguns papéis são pré-definidos culturalmente. Mas é preciso. E precisamos falar sobre Dayse, sobre mulheres em cargos de chefia ou posição de destaque numa sociedade acostumada a gradeá-las em seus lares, rodeá-las de filhos e preconceitos, calar suas vozes e agonias com o intuito falseado de proteção.

Em primeiro lugar devemos saber que o papel secundário da mulher na história da humanidade é fruto do patriarcalismo, que reservou o lugar da mulher ao “não lugar”. Quanto ao trabalho, antes da Revolução Industrial à mulher eram destinadas apenas algumas atividades, sob o intuito protetivo, já que era considerada frágil (parece que ouvimos algo parecido, séculos depois, no programa de TV).

A partir do século XIX, o processo de industrialização vivido pelo mundo europeu exigiu que as forças de trabalho feminina e infantil fossem solicitadas inicialmente na indústria têxtil, tanto na Inglaterra, como na França, porque menos dispendiosas e mais “dóceis”. Assim, essas chamadas na época de “meias-forças” passaram a ser exploradas.

Engels, em A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra, conta-nos que à época quanto mais a atividade dos braços e esforços musculares vinham sendo substituídos, mediante a introdução das máquinas, da força hidráulica ou do vapor, tanto menos se necessitava de homens, deslocados por mulheres e crianças que, além de serem mais hábeis que os homens, recebiam salários menores. [1] A desigualdade começa daí. A inserção da mulher nas fábricas do início da Revolução Industrial ocorreu por se tratar de mão de obra mais barata e de certa forma com maiores chances de exercício do poder de dominação consolidado socialmente.

Foram longos anos de exploração da força de trabalho feminina e de tentativa de afirmação da mulher na sociedade capitalista contemporânea, ressaltando-se o problema da divisão sexual do trabalho (designação prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva) que deixa seus resquícios nas organizações empresariais da atualidade.

Apesar de alguns avanços, a atual situação da mulher no mercado de trabalho e especialmente em cargos de chefia apresenta disparidades difíceis de explicar. Relatório divulgado pela OIT em 2015, publicação intitulada de “Mulheres em Gestão e Negócios: ganhando impulso” com dados de 108 países, mostra que em 80 deles houve crescimento da liderança feminina nas empresas, mas principalmente nas posições intermediárias.

Não obstante, quase todas as empresas no mundo continuam sendo presididas por homens, e apenas 5% dos postos de chefia e de diretorias executivas de empresas são ocupados por mulheres. No Brasil, o índice de ocupação feminina nestes cargos fica entre 5% e 10%, assim como na China, Itália, México e Espanha.

Infelizmente as mulheres tem em sua maioria ocupações precarizadas, trabalhos com maior descontinuidade de tempo e menor garantia de direitos, além de salários mais baixos que os homens. Isso contribui para o que chamamos de feminização da pobreza.

Esses números entram em confronto direto com outro dado: o nível médio de instrução das mulheres é superior ao dos homens. Nas zonas urbanas da América Latina as mulheres economicamente ativas possuem, em média, nove anos de instrução, enquanto os homens possuem oito.

Apresento um outro dado que contrasta e complementa os demais: a porcentagem de famílias chefiadas por mulheres aumentou. No Brasil, de acordo com dados do IBGE de 2004 a 2014, a quantidade de lares chefiados por mulheres aumentou 67% (11,4 milhões de mulheres passaram a essa condição), enquanto para os homens houve aumento de 6%.

Todos esses números demonstram que, apesar de mais qualificadas, capazes para o exercício de qualquer profissão, competentes para a gestão de seus lares de forma plena e crescente na sociedade contemporânea, as mulheres ainda são discriminadas nos ambientes de trabalho por motivo de gênero. Ademais, as mulheres assumiram a chefia de seus lares, com salários mais baixos que os homens e enfrentam diariamente o desafio de trabalhar de forma precária e garantir a sua subsistência e de seus familiares. São guerreiras silenciosas a quem a sociedade não oferece qualquer apoio.

Não é demais apontar que a discriminação em relação a mulheres em cargos de chefia também está intimamente ligada ao argumento vazio acerca de sua condição biológica. A maternidade ainda é vista como óbice para a ocupação por mulheres de determinados cargos empresariais. A pesquisa Brasileiras – Como elas estão mudando o rumo do País, divulgada no último dia 02 pelo instituto de pesquisa Locomotiva, revelou que 30% dos homens entrevistados concordam com a seguinte frase “é justo mulheres assumirem menos cargos de chefia que homens, já que podem engravidar e sair de licença-maternidade.”

De acordo com 30% dos homens entrevistados à mulher é reservada uma ocupação de hierarquia inferior devido ao fato de poder gerar filhos, já que isso atrapalharia o andamento da atividade econômica à qual se integram. Esses mesmos homens que amam seus filhos e esposas acreditam que elas não podem alcançar determinados papéis na atual forma de organização social porque são mães e esposas. Não é demais observar que nestes casos a lógica da produção supera qualquer racionalidade dotada de razoabilidade e de justiça.

Tudo o que foi exposto até agora revela o problema da aceitação da mulher nas organizações e nos cargos políticos, ou seja, em posição de destaque na sociedade. Tal problema perpassa por outros tantos de ordem cultural, política e ideológica. É realmente muito difícil atribuir o papel de protagonista àquela a quem sempre foi reservado o de coadjuvante.

Em seu conto Manuelas, Galeano nos brinda com a problemática do protagonismo da mulher na história. Narra: “Todos homens. Mas uma mulher, Manuela Canizares, quem os recrutava e os reunia para que conspirassem em sua casa. Na noite de 9 de agosto de 1809, os homens passaram horas e horas discutindo, que sim, que não, que quem sabe, e não se decidiam a proclamar de uma vez por todas a independência do Equador. E uma vez mais estavam postergando o assunto para outra ocasião, quando Manuela os encarou e gritou covardes, medrosos, nascidos para a servidão. E ao amanhecer do dia de hoje, 10 de agosto, se abriu a porta do novo tempo. Outra Manuela, Manuela Espejo, também precursora da independência americana, foi a primeira periodista do Equador. Como essa era uma ocupação imprópria para mulheres, publicava com pseudônimo seus audaciosos artigos contra a mentalidade servil que humilhava sua terra. E outra Manuela, Manuela Saenz, ganhou fama perpétua por ser a amante de Simón Bolivar, mas ela foi ela: a mulher que lutou contra o poder colonial e contra o poder do homem e seu moralismo hipócrita”. [2]

Galeano e suas Manuelas revelam o quanto é difícil a inserção social do protagonismo feminino. Mas ele está por ali, nos rodapés dos livros de história, nas versões desmentidas e nos olhos assustados dos narradores mentirosos. E no dia em que ele aparecer de verdade não haverá caminho mais notável da humanidade que aquele traçado por quem atribuiu à mulher o papel que ela merece.

O problema deve ser enfrentado. Não é demais salientar que não se deve buscar apenas a igualdade formal, mas a igualdade substancial entre homens e mulheres, seja no mercado de trabalho, seja nos papéis da sociedade. Preconizar a igualdade na lei não basta, é preciso que o Estado garanta a igualdade de remuneração, de tratamento no trabalho e de acesso às funções públicas e que puna de forma exemplar quaisquer condutas que retirem das mulheres a igualdade de acesso e a garantia de manutenção em seus cargos.

É necessário que se olhe a fundo para as organizações de forma a identificar tratamentos diferenciados e que os sindicatos atuem efetivamente na defesa dos direitos das trabalhadoras, impedindo que o mercado precarizado seja reservado às mulheres.

É preciso que os novos papéis no âmbito familiar sejam reconhecidos pelo Estado e que isso reflita no Direito, regulamentando de forma eficaz casos como os da licença maternidade, a fim de estender aos homens a proteção e a consequente divisão das responsabilidades nos primeiros meses de vida de seus filhos.

Devemos identificar a disparidade de condições de trabalho a fim de viabilizar a adoção de ações afirmativas, expandindo as possibilidades de colocação da mulher no mercado, com direitos iguais aos dos homens. É preciso vencer a discriminação, ainda que invisível, nas organizações, na política e no convívio social.

Quantas vezes não ouvimos de muitos homens e mulheres que “trabalhar com mulher é difícil”? Para os que assim pensam, respondo: difícil não é trabalhar ou ser chefiado por mulher, difícil é ser mulher em uma sociedade patriarcal e machista na qual diariamente é preciso provar a plena capacidade de exercício de qualquer cargo ou função em razão de seu gênero. Difícil é conviver com os olhares assustados e desconfiados quando se é mulher em posição de destaque. Difícil é ser mãe, chefa de família, Dayse, lutar por sua sobrevivência e aceitação e em razão de tudo isso lhe ver negada a possibilidade de ascensão profissional na lógica do mercado.

Roselene Aparecida Taveira é Mulher, Juíza do Trabalho do TRT da 15ª Região, membra da Associação de Juízes pela Democracia, especializada em Direito do Trabalho e Seguridade Social pela Universidade de São Paulo.

[1] ENGELS, FRIEDRICH. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, edição José Paulo Netto – São Paulo, Boitempo, 2008, p. 179.

[2] GALEANO, Eduardo. Mujeres. – 1ª ed. 4ª reimpr. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2016.