Sobre figuras femininas, amor e escrita.

Em janeiro deste ano li o Deslocamentos do feminino da Maria Rita Kehl, um livro que se debruça sobre a relação entre a clínica psicanalítica e a posição feminina fazendo uso, principalmente, da literatura como um documento que nos dá acesso ao inconsciente — que é sempre uma instância coletiva, ou seja, social — do século XIX. Nesse livro fica evidente o quanto a psicanálise dá à linguagem o estatuto de uma materialidade que constrói e transforma a vida humana a todo o tempo — uma perspectiva que me agrada muito — de modo que toda produção discursiva — literatura, jornalismo, marketing, textão no Facebook — tem um impacto no mundo. É, assim, tratando os livros como documentos privilegiados, que Kehl analisa de que maneira ocorre, no mesmo período no qual a psicanálise emergiu, a invenção de uma figura feminina que é profundamente atrelada a um ideal romântico.

São muitos os pontos que gostaria de destacar sobre esse livro, mas aqui me interessa sobretudo duas coisas: O procedimentos de amar, inventados por homens, que envolvem a figura feminina e a materialidade da literatura.

Kehl expõe como o ideal romântico aposta numa posição feminina que se fundamenta em procedimentos contraditórios: A recusa e a submissão. A recusa é a posição que a mulher deve sustentar antes do casamento, como um objeto casto que se valoriza apenas para instigar o prazer masculino da conquista. A submissão é o ato seguinte, no qual a mulher já conquistada deve venerar aquele que a domou. Para além das expectativas românticas conflituosas que essa invenção produz, há essa violência grotesca: Não cabe aí o desejo das mulheres, a performance tipicamente feminina nessa concepção de amor é passiva e moldada exclusivamente a partir do desejo do outro.

Lacan diz que o desejo é sempre desejo do outro o que parece mais uma dessas formulações obscuras que ninguém entende, mas que, para mim, se faz mais compreensível quando penso na recusa e na submissão como procedimentos que as mulheres podem executar, não como obrigação, mas como meio para um tipo de desejo: o de serem coisas desejáveis. É importante reconhecer que isso é uma opção. O que provoca a opressão das mulheres é quando essa parece ser a única opção e não cabe a nós o papel de desejantes. Quando o desejo das mulheres começa a mostrar os dentes e deixar suas manguinhas de fora algo já se estraga, porque é um risco na passividade que se espera desses seres.

O problema é enorme porque nenhuma opressão se estabelece sem uma gama de resistências. Dentro de cada narrativa que sustentamos por algum tempo como Lei ou Verdade há toda uma praga de possibilidades explorando cada milímetro que resta entre um símbolo e outro. E as mulheres, apesar ou justamente a partir do silêncio imposto, aprenderam a infestar o mundo com outras formas de dizer seus desejos. Assim, nasce a histeria, o corpo que fala o que a língua deve esconder, a astúcia das que fazem uso desse jogo, que sabem exercer os procedimentos guiadas por um desejo ativo, e a posição de infeliz coragem das que recusam.

“Assim como o orgulho das mulheres, antes do casamento, só se pode manifestar tenacidade com que elas resistem à entrega, a coragem feminina também não tem outro modo de emprego, e Stendhal refere-se à firmeza com que certas mulheres resistem ao amor, como a qualidade mais admirável que existe sobre a terra. Mas essa coragem, temperada pelo hábito do sacrifício e do pudor, assim como o orgulho feminino, são qualidades íntimas, invisíveis socialmente. “Uma infelicidade das mulheres é que as provas dessa coragem permaneçam sempre secretas e sejam quase impossíveis de divulgar. Uma infelicidade ainda maior é que ela seja sempre empregada contra sua felicidade”.

Cito 3 posições possíveis, mas isso não é para ser um catálogo, é o que consigo visualizar e se escrevo é porque preciso de um repertório mais amplo do que essa ninharia. Esse jogo, que a gente ainda costuma tomar como amor, me parece uma rua sem saída independente do lugar que se ocupa.

Tem sido recorrente um tipo de discurso entre as mulheres da minha idade: Somos difíceis de amar. Isso é afirmado não mais como uma falha nossa, mas como uma incapacidade masculina. Em poemas, músicas, artigos na internet e séries existe esse tema: Mulheres socialmente (mais) independentes e ideologicamente livres que estão insatisfeitas quando o assunto é o amor. Amar parece difícil, insuportável, impossível, uma trapaça.

O que essa produção discursiva sustenta, às vezes de modo mais implícito e em outras mais escancarado, é que as mulheres livres não são feitas para o amor, que os homens são incapazes de acompanhar seus ritmos e, principalmente, de aceitá-las indomáveis — basicamente uns boy lixo frouxo do inferno. Nessas narrativas, a mulher livre é sempre um excedente, algo intenso, pesado, sedento, desejante demais.

Tenho pensado muito sobre o que isso quer dizer sobre nós. E me pergunto o que significa esse “demais”, de onde tiramos esse parâmetro? De onde vem o tamanho que delimita esse excesso? Afinal, sobre quem e para quem estamos falando/escrevendo?

Quando o amor e o desejo da mulher se libertam de seu aprisionamento narcísico e repressivo para corresponder aos do homem, parece que alguma coisa se esvazia no próprio ser da mulher. Os suicídios de Ana e Emma são nesse caso, exemplares. Teriam suas vidas perdido o sentido depois que elas se entregaram sem restrições ao conde Vronsky, ou a Rodolphe Boulanger? Não; diria que a perda de sentido se dá nelas próprias. Ao desejarem e amarem tanto quanto foram amadas e desejadas, elas deixaram de fazer sentido como mulheres — primeiro para os amantes, depois para si mesmas.