Todos flertamos com a felicidade, ela é o ápice dos nossos objetivos mais vibrantes.  Defini-la é algo muito complexo, ela pode ter definições distintas para cada um de nós, contudo o estado de ânimo que nos causa, esse sim é singular. O êxtase e o torpor trazido pela felicidade é algo indescritível.

Há algum tempo li o livro “Julie & Julia” da escritora Julie Powell. A leitura foi muito doce e agradável e por se tratar de um romance autobiográfico, muito encorajador.

Uma funcionária pública, que um dia aspirou ser atriz, tinha um trabalho desmotivante, morava com o marido, um homem dos sonhos, em um apartamento ruim, com uma cozinha minúscula e dois gatos e um dia resolveu criar um projeto de vida e ir até o fim, ou seja, alcançar aquele cume no qual a felicidade luminosa nos aguarda. Ela foi encorajada pelo marido a criar esse projeto, que seria preparar em um ano 524 receitas de um livro homônimo lançado por Julia Child na década de 60, e após cada preparo escreveria suas impressões em um blog pessoal.

Até ai tudo bem, palmas para ela e para o marido que a intimou a concretizar uma meta. O projeto foi um sucesso, o blog deu vida a um livro que por sua vez virou um filme estrelado por Amy Adams e Meryl Streep e no fim dessa história em largas letras a vida desenhou para Julie um “Felizes Para Sempre”.

Não, não foi bem assim. Aconteceu à jovem escritora o que acontece com praticamente todo ser humano adulto, em maior ou menor grau: a auto-sabotagem ou melhor dizendo, o auto-boicote da felicidade.

Vocês já ouviram falar que muitas vezes podemos ser nosso maior inimigo? Depois de ler o segundo livro de Julie, o “Destrinchando”, minha mente pairou afoita sobre a verdade dessa afirmação e sobre seus fundamentos.

De acordo com o psicoterapeuta Flávio Gikovate todos somos tomados por um medo iminente da catástrofe quando alcançamos a felicidade. Ficamos felizes e logo depois aflitos, com pavor de perder o tão almejado estado de graça. Dessa forma acabamos tomando medidas inconscientes para tratar de, se não extinguir a felicidade, ao menos minimizá-la, tornando-a aceitável. Em outras palavras, nos auto-aniquilamos.

Esse medo repentino, e muitas vezes avassalador, após uma sensação de realização plena, pode ter suas raízes em algo que vivenciamos ao nascer: a ruptura da harmonia perfeita na hora do parto. Algo descrito como trauma do nascimento por Otto Rank.

Resumidamente esse mecanismo segue sempre um ciclo padrão: a felicidade atingida ativa memórias que nos alertam sobre a ruptura iminente desse estado, dessa forma, movidos por um medo exacerbado, buscamos impedir que essa ruptura aconteça.

Vamos dar um exemplo. Não é incomum que, logo após comprar um carro novo, algo que hipoteticamente pode nos deixar felizes, acabemos ralando-o ligeiramente na primeira pilastra que nos salta aos olhos. E, estranhamente, depois de livrar o carro de sua aura etérea e perfeita, e de nos culparmos um pouco por isso, sentiremos um certo alívio. Isso acontece porque um carro ligeiramente ralado, não mais perfeito, deixa de simbolizar a felicidade plena e o estigma que ela carrega e com isso aquele medo iminente de que algo dará errado simplesmente desaparece.

Voltando à nossa Julie, vamos dizer que sua vida se tornou repleta de felicidade após a concretização de seu projeto “Julie & Julia”. Ela teve a possibilidade de deixar o emprego que não lhe satisfazia. Ganhou muito dinheiro com a publicação do livro, assim como pela venda dos direitos para a realização do filme, o que permitiu que ela saísse de seu antigo apartamento. Seu ótimo marido esteve ao seu lado e assim continuou. No entanto Julie jogou a felicidade para o alto em um tempo relativamente curto após experimentá-la e buscou inconsciente e afoita sua auto-degradação física e emocional, a ponto de seus familiares se negarem a ler seu segundo romance autobiográfico. E eu não os culpo!

Gikovate afirma que o medo da felicidade não tem cura (que lástima!) e que algumas pessoas até mesmo usam artifícios supersticiosos como batidinhas na madeira ou amuletos para prolongar hipoteticamente a duração desse estado de bem estar e impedir que alguma desgraça aconteça. Outros ainda fazem uso de artifícios sociais que ajudam a abraçar a felicidade sem pudores. Uma rodada de álcool com amigos, por exemplo, encoraja a aceitação do que é extraordinariamente bom e entorpece o medo. Contudo, não é politicamente correto incentivar o misticismo ou o uso indiscriminado do álcool como elixir mágico.

Encarar a realidade de frente pode ser uma saída para entender e controlar essa nossa ansiedade detonadora. Ser sincero consigo mesmo é um ponto de partida essencial. Admitir que se é de carne e osso e que, após atingir um estado de felicidade plena, um medo relativo de ser cuspido dele certamente virá, é imprescindível. Apenas cientes desse medo podemos então minimizá-lo.

Devemos traçar nossos objetivos e nos manter firmes em lutar por eles, sem protelá-los, aceitando com plenitude a felicidade que decorrer de nossas conquistas. É essencial que acreditemos ser merecedores dessa felicidade e não devemos abrir mão dela pelo medo que nos virá inevitavelmente afligir. Devemos ser persistentes em controlar nossos impulsos de colocar tudo a perder.

Se nos interessarmos por alguém, não devemos criar obstáculos que nos impeçam de nos aproximarmos dessa pessoa. Se juntarmos dinheiro para fazer uma viagem dos sonhos ao redor do mundo, nosso avião não cairá por isso. Se ganharmos uma promoção, a empresa que nos emprega não aderirá à demissão em massa. Esses medos sempre nos assombrarão, contudo não podem ditar nossos passos.

Devemos caminhar em direção à felicidade e assumir que, uma vez felizes, nos rasgaremos sim em medo, contudo, conscientes desse pavor estaremos preparados para mergulhar de corpo e alma nas profundas águas da felicidade. E nelas poderemos assim restar, até que nossos dedos se dobrem em rugas.

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