Um conselho que pode servir para qualquer pessoa…

(…) Quero começar falando que sua condição é bem especial. A vida reservou surpresas dolorosas no seu caminho. Sua pergunta “como recomeçar uma vida, literalmente, do nada” pode parecer muito apropriada, mas eu colocaria de outro jeito.

Serei honesto, no mínimo, é de tirar o fôlego de qualquer um. Não consigo nem de longe imaginar o que você sente, então, vamos por partes.

Você não está começando do nada, pois tem atrás de si uma bagagem diferente de qualquer pessoa. Você tem algumas escolhas diante desse cenário:

a) Desistir e se entregar até que a morte bata à sua porta;

b) Viver uma vida indiferente a tudo;

c) Sentir raiva de cada acontecimento como se pudesse eleger um alvo para alimentar esse ressentimento ininterrupto;

d) Fazer algo com seu repertório;

Qualquer coisa que você pensar em fazer daqui para frente, terá que considerar que não será fácil, não será agradável, estará sozinho e não terá garantia de nada. Mesmo assim, acho que há muitas possibilidades e, se puder desistir de expectativas de livro de “autoajuda barata”, talvez tenha uma chance.

Você precisa dar passos pequenos, daqueles absolutamente arrastados, preguiçosos e que o levem para qualquer lugar um pouco distante de onde você esteja. Faça algo, mesmo que seja insuportavelmente humilhante, afinal, qualquer tipo de orgulho pessoal é um pouco inútil quando já se perdeu coisas essenciais.

Toda crise é um tipo de convite silencioso para reflexões e mudanças de rota. Nessas bifurcações, inevitavelmente sacrificamos aspectos que imaginávamos serem o que nos caracterizava. Daí, surge a depressão como um movimento da mente que se recusa a ser algo diferente do que era antes.

A depressão, na maioria dos casos, é fruto de uma não-aceitação do eu-atual e uma nostalgia do eu-vitorioso dos jogos da vida.

Deixar de ser vitorioso desses jogos habituais não é necessariamente um problema, especialmente se estivermos fixados num tipo meio doentio de jogo.

Todas as suas máscaras estão no chão e você está caminhando sozinho, sem os artifícios habituais que a maioria carrega: dinheiro, estabilidade profissional e amorosa, um plano para o futuro. Isso pode tanto fazer você afundar como ajudá-lo a identificar o espaço de liberdade que surge à frente.

Gosto da imagem final do filme “Náufrago”, em que ela está diante de uma encruzilhada, sem nenhuma perspectiva do próximo passo. Em essência, estamos todos assim, preferindo acreditar no condicionamento de que há segurança absoluta numa poupança gorda ou numa declaração de amor emocionada.

Você carrega consigo cicatrizes e, dependendo da maneira que der sentido para cada acontecimento passado, poderá passar o resto dos seus dias com piedade de si mesmo (caminho mais curto para o pior) ou receber cada pedrada como um chamado.

Não quero que imagine que pode ou precisa virar um herói orgulhoso de suas desgraças, chocando os outros com sua “superação milagrosa”. Não possso ignorar, porém, um fator importante: você sobreviveu e está aqui para contar história.

Resiliência não é um dom natural, mas uma habilidade que se desenvolve ao seguir em frente mesmo sob a tortura mental.

O trauma é um tipo de postura que se adquire diante de um acontecimento trágico e incompreensível. Portanto, pode-se escolher sustentá-lo e tirá-lo do bolso a cada novo apertão da vida, dizendo “sou um sequelado não exija nada de mim”, ou dar-se conta de que todas as regras do jogo, que servem para a maioria das pessoas, não servem para você.

Algo bom para se perceber é que, com todos os contratempos, você atravessou um portal imaginário que dá uma licença para escolher sua vida de uma maneira incomum. Você já esteve face a face com o mal que este mundo pode produzir e não tem falsas ilusões de que o bem é recompensado e o mal é punido. Sua experiência quebrou com essas dicotomias de contos-de-fada. A vida revelou sua dimensão bruta e toda essa crueza fez um convite para que pudesse forjar algo novo em você.

Sinto dizer, mas não é a sua ex o verdadeiro sinal de esperança. Nem ela e nem ninguém tem a chave para sua superação. Nem eu.

O que posso dizer com toda a certeza é que esse recomeço precisa vir acompanhado de desprendimento de qualquer desejo por certeza. É preciso dar passos no escuro até que algo comece a ganhar clareza.

Você pode iniciar pelo seu chão, algo que possa dar base concreta para seus dias e, a essa altura, pode servir como ocupação que renda a você um senso mínimo de propósito e, ao mesmo tempo, ajude a pagar suas contas.

Eu poderia ser um romântico e dizer que precisa acreditar em si, mas não existe mais um “eu” habitual ao qual se agarrar, que possa assegurar uma resposta em termos de certo e errado. Aquele comportamento do cara que agia corretamente como meio de obter controle social naufragou. Agora é hora de parir a si mesmo no meio do caos.

Procure um meio de manter sua mente e mãos em atividade até que, lentamente, reestabeleça um círculo mínimo de confiança no qual possa se apoiar – mesmo que precise obscurecer certos aspectos de sua vida. O objetivo agora é sair da areia movediça e não buscar aceitação incondicional.

O interesse amoroso de alguém ou de sua ex certamente não virá como resultado de piedade, ainda que existam pessoas que se atraem por pessoas decaídas para soarem nobres. O que você busca agora é um mínimo de vivacidade e estabilidade, portanto, precisará manter a cadência, mesmo com dores nos ossos e fragilidade na alma.

Recomendo o suicídio, mas não o literal. Ao invés disso, recomendo que mate uma parte psicológica de sua mente que se apoiava nas antigas certezas para se enaltecer. De agora em diante você precisa ser um morto-vivo. Alguém que, apesar das feridas, segue em frente. Assim, quando chegar o dia de sua morte real, talvez você tenha estado o mais vivo que pôde. A verdade é que todos nós carregamos nossos destroços, não se engane com as fotos do Facebook alheio.

Qualquer pessoa que tenha lido o seu relato provavelmente deve estar se sentindo abismada e levemente envergonhada de reclamar de uma vida com muitos confortos, privilégios e sem grandes contratempos.

Sua experiência, K., tem algo de pedagógica para os outros. Ela ensina que é possível sorrir, como fez no final do seu email, mesmo em meio a uma situação caótica. Ela mostra que as forças não saem de uma vontade ajeitada num caixote previsível, embrulhado para presente, mas de dimensões inexploradas da personalidade.

Talvez, você encontre um pouco de alento na raiva ou na culpa, mas garanto que elas sustentarão por pouco tempo o seu ânimo. Viva a partir da sua experiência imediata, daqui para frente, sem contar historinhas bonitas de como a vida deveria ser ou de devaneios hollywodianos de sagas épicas, mas se apoiando numa coragem profunda diante da realidade como ela é.

A lucidez advinda dessa perspectiva será o guia mais seguro que poderá obter, sem dramas, sem terror, sem comédia ou sem reinterpretações baratas.

Acredito que nos comentários abaixo muitas pessoas terão um pouco mais a contribuir no seu caso.

Propositalmente, não quis me apegar a nenhum evento em particular, para que você não coloque sua dor num trono, tampouco no reino do esquecimento, mas que possa desenrolar tudo aqui e agora.

Com o tempo e com as forças reestabelecidas, os acontecimentos do passado terão o seu lugar de ressignificação. Por hora, é mão na massa.