Não é uma carta suicida mas é um suicídio de palavras. Não é um contexto testamentário mas uma desconexão contextual. O premeditado desvínculo de palavras tantas vezes fixadas no silêncio do olhar, no quarto escuro na madrugada ou no apertar das mãos à luz do dia. Palavras escritas manualmente, no teclar dos dedos, nas assinaturas e folhas rasuradas, nas entrelinhas e nos ruídos da existência.

Se eu morrer amanhã… coloque em meu túmulo que morri tentando. Que durante algum tempo tentei ser melhor que os outros, até descobrir dolorosamente que precisava ser melhor para eles, e nada receberia em troca. Que o querer ser melhor era uma mera indução social para alimentar o ego, inflar o olhar e implodir a alma dos que me exigiam ser assim. Mas melhor me tornei quando matei minhas fraquezas, um dia de cada vez, percebendo que excesso de brilho não era excesso de luz. E que a maioria dos conselhos eram mesmo petições projetadas.

Se eu morrer amanhã… diga aos meus pais e mestres que eles foram uma ótima escolha do incompreensível Onisciente para eu passar pelo mundo. Que aprendi muito com eles, que os amei imensamente de muitas formas e linguagens mas que também foram responsáveis por alguma inércia diante das coisas da vida. Porque me protegeram tanto dos perigos no caminho que me entregaram a treinar sozinho as asas que sobrevoaram o inevitável mundo – dentro ou fora de mim. Mas deixe claro a eles que não os culpo, muito menos que os quero mal. Peça apenas que ouçam com atenção, pois o que digo é o resumo carinhoso de todos os conselhos que esbarraram em nossa discordância de ideias, de pensamentos, de vivências e maneiras de sentir a vida.

Se eu morrer amanhã… não deem um tostão aos bancos, tão pouco paguem meus impostos ao governo. Não alimentem este mundo fantasioso que vende emoções sintetizadas em pílulas. Que faz guerra psicológica em propagandas, comercializa alimentos com produtos químicos que alteram a mente, usam bolhas de controle em forma de redes sociais, fazem terrorismo para combater terroristas. Não deixem que levem o meu dito patrimônio, nem que determinem a maneira como esses bens serão dissolvidos. Pegue o que eu deixar e doe aos pobres, aos miseráveis que provavelmente são bem menos miséria do que as migalhas que meu dinheiro comprou.

Se eu morrer amanhã… não deixe os negócios pararem. Coloque os projetos engavetados no papel, e do papel coloque em ação. Encontre os melhores projetos e faça o melhor time. Diga a eles que continuem amando o que fizerem e que façam mesmo com todo coração. Peça que não se matem trabalhando a ponto de esquecerem de viver – pelos necessitados, por eles mesmos e pelos que amam.

Se eu morrer amanhã… diga aos meus falsos amigos que eu sentia muito por não tê-los por perto como estavam no início quando nos conhecemos. Que eles atiçaram minha subjetiva maneira de enxergar bondade mas me afastei deles em corpo à medida em que já tinham ido no coração. E nos bons e velhos amigos, dê um abraço forte. Peça-lhes que não chorem e que não se emocionem com nossas histórias sem a intenção de seguir em frente com a mesma intensidade.

Se eu morrer amanhã… diga aos que eu devia algum favor, dinheiro ou informação, que me perdoem. Por tê-los deixado esperando mas principalmente por não ter tido a força capaz de dizer-lhes não, logo no início, para nosso próprio bem e para o poupar do tempo. E diga aos que me devem – favor, dinheiro ou qualquer coisa – que são livres. Que a dívida levo comigo e que o preço fica com eles, para impedir-lhes da negligência numa próxima vez.

Se eu morrer amanhã… faça saber nas atuais redes sociais na Internet e por todas as timelines que ainda inventarem, que fiz o melhor que podia, usando o melhor que tinha, com os que acreditaram em mim. E peça aos que me consideravam – por curiosidade, hipocrisia ou veracidade – que não fiquem enlutados. Não coloquem tarjas pretas e não publiquem fotos ao meu lado como antigamente. Faça saber a todos que o tempo que vivemos juntos foi pra sepultura comigo, pelo bom proveito ou pelo remorso evidente. Diga que sigam sempre em frente, porque a vida não tem outro sentido.

Se eu morrer amanhã… queime minha estante e todos os livros sem dedicatória. E os que tiverem dedicatória, faça voltar ao remetente como forma de gratidão, para que as palavras ressuscitem boas lembranças nos dias frios ou nas tempestades. Venda também meus equipamentos tecnológicos e outras parafernálias pós-modernas e tenha certeza de que o dinheiro adquirido chegará de alguma maneira a quem precisa mesmo, em forma de pão, água, roupa ou dignidade na vida.

Se eu morrer amanhã… leve aos meus líderes espirituais, aos fieis da minha comunidade e aos ‘bem-ditos’ irmãos de fé, o seguinte recado: “obrigado pela oportunidade horizontal que me deram de praticar uma nanofração vertical do amor divino ao convivermos juntos, suportando-nos mutuamente, mesmo sabendo que em todos os nossos abraços senti também o escárnio da hipocrisia inconscientemente humana, secretamente traumática, severamente pecadora”. Mas não seja rude com nenhum deles, nem os force a coisa alguma. Pois minha interpretação dos fatos pode não ter sido absoluta e minha experiência espiritual pode não ter sido tão empírica – ‘assim na minha como na deles’. Que o Eterno esteja em todos.

Se eu morrer amanhã… saiba que “morri de amor mas continuei vivendo”. Que escrevi poemas, curti poetas, levei flores, suei a camisa, o corpo e as mãos. Que enfrentei problemas e olhares, que lutei junto, que fui até o fim do mundo para ter respeito. Me doei, me entreguei, fui vítima e me fiz vilão. Que fui longe demais para estar perto. Diga que viajei pelo mundo, que me perdi por alguns segundos mas encontrei plenamente aquilo que muitos só buscaram no ócio mental.

Se eu morrer amanhã… leve minhas desculpas a todos que me conheciam profundamente, que me aceitavam sem forçar ou com qualquer esforço. Os que me viram sorrir ou chorar, os que sabiam como compartilhar tempo e sentimentos sem depender das limitações geográficas, ideológicas ou circunstanciais. Diga que eu pensava ter mais tempo para as reuniões e viagens juntos que sempre falávamos mas não fizemos acontecer. Diga-lhes que sou grato por dedicarem um pouco mais de seu precioso tempo para compartilhar histórias, necessidades e fotografias, trocarmos ideias similares ou contraditórias – sobre nós mesmos muito mais do que sobre os outros.

Se eu morrer amanhã… diga a todos os que se tornaram ‘ex’ que eles foram EX-emplos — do que fazer ou não fazer, do que ser ou não ser. E foram muitos exemplos: Amigos, patrões, parceiros, relacionamentos, sócios, professores, colegas, mentores… Todos me ensinaram algo que contribuiu para minha jornada. Da experiência mais nobre à covardia inerente, levo um pouco de cada um comigo e deixo um pouco de mim pra eles.

Se eu morrer amanhã… agradeça aos meus irmãos de sangue, e a tantos outros de alma. Abrace-os bem apertado e diga que posso não ter sido o que eles sonhavam mas que eu cheguei lá a despeito de qualquer teoria. E beije-os se deixarem, pois precisarão de mais amor agora que fui, de um amor maior que as lágrimas que derramei por eles, as ligações pedindo favor, as preces que fiz na madrugada ou as piadas sem graça que permiti como carinho nos músculos de suas faces.

Se eu morrer amanhã… deixe claro que vivi plenamente hoje tudo o que veio até mim – por escolha intencional, por negligência irracional ou por providências casuais do Céu ou da Terra. Se perguntarem se eu sorri, diga que sim. Se eu sofri? Muitas vezes também. Mas não fale tanto das lágrimas derramadas para que não percam a esperança durante os seus dias mais sombrios. Alguns dependerão disso para continuarem existindo.

Talvez eu morra amanhã, talvez não. Mas caso seja, que este recorte filosófico permaneça vivo enquanto eu durmo. E de tão provocativo que possa ser, que seja verdadeiro para te fazer lutar por tudo que te faz sorrir. E ao acordar, perceba eu que tudo que vivi pode ser resumido em gratidão. E antes que me chamem louco, exija que me percebam grato. Por viver sabendo da morte e por morrer acreditando na vida.