Por Martha Medeiros

Passei por um casal discutindo num ponto de ônibus. A moça estava uma arara, mas aludiu a outro bicho: “Não tenho sangue de barata!” gritava ela pra justificar seu destempero. Passei reto, mas encasquetei: barata teria sangue mesmo? Pelo que pesquisei, tem uma gosma chamada hemolinfa que não apresenta pigmentos como a hemoglobina, e por isso é transparente e não conduz sensibilidade até o coração, como acontece com os seres humanos. Daí o surgimento da expressão popular “ter sangue de barata”, que significa que a pessoa não reage quando é atingida, fica apática.

Não ter sangue de barata é uma virtude. Seres humanos são reagentes por natureza, lutam pelos seus desejos, brigam por suas ideias, inflamam-se. Porém, fiz um rápido flashback dos momentos em que eu deveria ter feito a casa cair, soltado os cachorros e demais reações de quem tem sangue de verdade correndo nas veias, e concluí que tenho uma infeliz familiaridade com o tal inseto.

Minha sensibilidade alcança o coração, lógico, mas não provoca grandes curtos-circuitos. Ninguém precisa me pedir para ficar fria, sou praticamente um Buda. Outro dia um psiquiatra me perguntou onde eu despejava a minha raiva e, constrangida, tive que admitir que vim ao mundo sem esse explosivo. Nasci pouco antes de completar os nove meses de gestação e deve ter sido essa pressa em existir que me fez chegar aqui incompleta. Não deu tempo de incluir a raiva no meu DNA. Amo, sofro, choro, me frustro, me encanto, me assusto, me emociono e cometo seis dos sete pecados capitais, menos a ira, que faltou no meu código genético.

Tenho, pois, sangue de barata.
Por um lado, é útil. Me safei de ficar berrando em paradas de ônibus, derramando copos de cerveja sobre a cabeça de namorados, dando piti em fila de cinema, revidando e-mails grosseiros, comprando brigas desnecessárias. Não chego a ser o sonho do Procon: reivindico meus direitos legais, mas quando o caso é de discordância ou falta de sintonia, simplesmente sumo, desapareço. Prefiro tratar da minha vida a vencer uma discussão. Pode não ser nobre, mas só eu sei o que essa inclinação para a paz me devolve em benefícios, e não são poucos. Quase tudo que conquistei na vida (desconte o exagero) foi por ter sangue de barata.

O silêncio em meio a discussões estéreis, a confiança de que as pessoas cansarão se eu não der corda para suas maluquices, a compaixão por quem não tem condição de expandir-se, a calma diante de provocações, a tolerância com alguns desaforos e a paciência para aguardar a hora exata de cair fora. Falando nisso, o que o Brasil mais tem feito é testar o meu sangue de barata. Não creio que mudarei de tática, mas a continuar o avanço do nosso atraso, a barata pode voar.