No Brasil, trabalha-se demais. As pessoas precisam se virar pra fazer caber o resto da vida nas horas que sobram. Mães e pais são os mais atingidos.

Por Rodrigo Ratier

Revelado pelo Estadão, o caso da mãe que deixa o filho por 12 horas na escola e se orgulha de nunca ter preparado uma papinha de bebê virou escândalo. O papinhagate, como apelidamos aqui na redação, viralizou e gerou reações indignadas no tribunal do Facebook. Que, você sabe, é aquele lugar onde todos são perfeitos e vivem vidas ideais.

Sobrou pedrada tanto para a mãe (dondoca! Carreirista!) quanto para a escola (assistencialista! Mercenária!). Para além da gritaria, algumas reflexões interessantes. Ninguém pergunta onde está o pai para dividir (desigualdade de gênero); muitos que criticam usufruem de babá e empregada (desigualdade social); criar um filho exige sempre abrir mão de algo (desigualdade de tempo).

Concordo. Mas acho que passaram ao largo da questão central. Que para mim é a seguinte: no Brasil, trabalha-se demais. E as pessoas precisam se virar para fazer caber o resto da vida nas horas que sobram.

Pais e mães – principalmente as mães – são os mais atingidos. Esses desalmados, na verdade, arriscam suas carreiras para criar seus filhos. Têm tempo escasso, e os empregadores sabem disso. Antecipam o problema e evitam, por exemplo, contratar mulheres casadas na faixa dos 30 anos. Licença maternidade e horários complicados são vistos como estorvo. Assim como as limitações de funções durante os nove meses de gravidez.

Também posso falar do meu caso. Sair às 17h30 para buscar minha filha não faz de mim a figura mais popular em NOVA ESCOLA. Se você tem amigos jornalistas, sabe o quão incomum é deixar uma redação nesse horário.

Sou um privilegiado. Tenho a compreensão de meus chefes, moro relativamente perto do trabalho e conto com diarista duas vezes por semana. Mesmo assim, preciso dar meus pulos. Tiro o atraso em casa e, neste momento, escrevo este texto no celular enquanto tomo café na padaria.

Fico pensando em quem não tem as mesmas condições. Esses, além de jornadas extenuantes, enfrentam um calvário de duas, três, quatro horas diárias no transporte público. E têm uma capacidade muito menor de negociar horários alternativos. Como responsabilizá-los por não ter tempo para os filhos? Procriar virou opção só para quem vive de renda? Não deveria ser uma questão de sorte nem de privilégio, mas é. Para quem trabalha, o direito de criar um filho só é conseguido na base da briga ou da brodagem.

“Ah, mas aqui trabalhamos demais porque produzimos pouco!” Culpar a baixa produtividade do trabalhador brasileiro é um jeito fácil de encerrar prematuramente a discussão apontando o dedo para a vítima. Conheço pouca gente que passa o batente jogando conversa fora, mandando foto de gatinho no zap zap ou dando scroll infinito no Facebook. Por outro lado, são inúmeras as histórias de dias desperdiçados em reuniões inúteis ou em tarefas sem sentido. Ou na tentativa de realizar ao mesmo tempo cinco funções, sendo que a pessoa não foi treinada ou instruída adequadamente para muitas delas.

Milhões de brasileiros têm filhos mesmo nessas condições e se viram para educá-los da melhor forma possível. Numa sociedade em que muita gente acredita que o dinheiro sempre será capaz de pagar alguém para solucionar um problema seu, surgir uma escola “faz tudo” era questão de tempo. Por mais ressalvas que tenhamos a esse tipo de serviço.

Algum dia, quem sabe, conseguiremos pensar em caminhos que ajudem as pessoas a trabalhar para viver, em vez de viver para trabalhar, como ocorre hoje. Não será agora. Não podemos contar com um governo que pretende legalizar, na marra, jornadas de trabalho de até 12 horas. A empatia do andar de cima conosco é zero. Compreensível. O buraco do papinhagate é mais no alto. No topo da pirâmide.