Por favor Fred, já queria há um tempo que você tentasse explicar a falta que um pai faz na vida dos filhos, principalmente na vida das meninas, e como isso afeta elas psicologicamente.

Meu pai se separou da minha mãe quando eu tinha uns onze anos e minha irmã nove, eu não sofri tanto, mas sinto que minha irmã sofreu, apesar dela sempre se fazer de durona. O problema é que ela é péssima para encontrar namorados, ela tem dezenove anos e está no terceiro namoro em menos de dois anos, acho que isso tem influência da ausência do pai, pois já li sobre, mas nunca explicavam direito.

E agora eu conheci uma menina que também foi abandonada pelo pai, e ela apesar de ser muito legal, é um pouco perdida em relação a relacionamentos.

Minha irmã é muito incerta em relação aos homens, acho que ela tem um pouco de medo de estar só, ao mesmo tempo que não consegue fazer um relacionamento dar certo. Todos os rapazes que ela namorou me pareciam boas pessoas, mas ela sempre encontrava um defeito e terminava, acho que até por luxo. Ela também é muito egoísta, já conversei com ela sobre isso, mas ela não muda nem um pouco.

É isso aí, agradeço.
Abração,
Arthur

Olá, Arthur,

Sua preocupação é legítima, mas não sei se consigo concordar completamente com seu diagnóstico informal. Existem muitos raciocínios clichês que podem nos levar à falsas conclusões sobre o comportamento humano. Por exemplo, você conclui de alguma maneira que o comportamento indeciso (perdido) e egoísta tem a ver com a falta da presença física do pai.

Vou tentar clarear essa correlação.

Função Paterna

Durante muito tempo alguns profissionais entendiam que a figura do pai e da mãe eram essencialmente ligadas ao gênero homem e mulher. Mas isso tem uma limitação histórica, muito em função do machismo cientificamente enraizado do início do século XX. Hoje, já se entende que existem duas funções psicológicas fundamentais no desenvolvimento da personalidade que não são necessariamente desempenhadas por um homem e uma mulher e nem obrigatoriamente por duas pessoas distintas.

Convencionou-se chamá-las de funções materna e paterna, que podem ser exercidas por dois homens, duas mulheres, uma avó, invertidamente entre homem e mulher ou por apenas um homem ou uma mulher.

A função materna é aquela que possibilita a comunhão entre as pessoas, de tal modo que a pessoa consiga confiar, amar, se emocionar e sensibilizar diante da vida e das outras pessoas. Relembrando que isso guarda resquícios sexistas, pois na verdade pode ser feito por qualquer pessoa.

A função paterna seria aquela responsável por confrontar os dados de realidade com a criança, tirando-a do reino encantado do egocentrismo e fazendo que consiga gradualmente perceber e respeitar os limites da convivência e das regras. Seria a mão pesada que frustraria seus desejos e organizaria o caos interno dando nome aos bois e colocando o sujeito diante da racionalidade e da lei. É a regra que previne o comportamento problemático, negligente, maldoso e em, última instância, criminoso.

O problema em si não seria a falta de um pai, mas da função paterna. Ou seja: o que falta na maioria das famílias é alguém que queira fazer o serviço “sujo” de colocar limites nos filhos e, em troca disso, perder momentaneamente aquele sorriso delicioso que só as crianças sabem dar.

Nossa sociedade, parece sofrer de uma infantolatria que tem poupado demasiadamente os filhos do contraste entre os desejos e a realidade. Como resultado, vemos crianças que incapazes de se conter ou que se responsabilizam demais por suas ações, se transformando em adultos negligentes e inconsequentes que vivem numa bolha psicológica, quase cegos, de forma que não notam o efeito de suas atitudes.

A função paterna chega a ser vista como sinal de falta de amor, como se ajudar a criança a construir um senso de respeito e limites fosse maltratar o filho. O afeto é dado no carinho e no limite, preparando a criança não só para os benefícios do amor incondicional de casa, mas do amor condicional da sociedade.

É uma violência contra a criança legitimar todas as suas ações sem ajudá-la a introjetar valores e princípios que a instrumente para um convívio social de qualidade.

Toda vez que um pai/mãe se recusa a explicar e fazer cumprir uma regra (que quase sempre tem um princípio legítimo por trás) ele está jogando seu filho aos leões fora de casa.

Porque os pais falham mais do que as mães?

O que é a presença de um “pai de verdade” quando ele está trabalhando e a mãe cuida dos filhos? Nesse modelo tradicional, que já tem perdido adeptos por conta das mudanças culturais e as necessidades de mercado, o pai não estava presente fisicamente enquanto a mãe se dedicava pessoalmente de todo o protocolo educacional. O pai era a figura provedora e usada como ameaça, “quando seu pai chegar você vai ver”.

Sem que percebessem, as mães criavam uma polarização, inibindo a criança de se desmanchar completamente ao pai que também chegava da rua como se tivesse que ser poupado de aborrecimentos domésticos. Por outro lado, os homens, na cultura machista, nunca foram instrumentados a agir com sensibilidade, carinho e afagos (com suas exceções) e por isso se trancafiavam em seu silêncio emocional.

Esse tipo de homem não sabe se relacionar com pessoas que não consigam fazer as mesmas coisas que ele. Como vai discutir de futebol, trabalho, bebidas e mulheres com uma criança de dois anos? Diante dessa lacuna os pais se mantinham acuados e muitas vezes acomodados a pagar as contas. Pagar as contas é algo importante, mas de certo modo incompleto e impessoal, pois uma criança não consegue interpretar a presença do pai no plano simbólico, imaginando que nas paredes da casa, no carro, na viagem de férias o que está embutido é a do pai no trabalho. Ou seja, mesmo que seu pensamento de pai fosse o de prover financeiramente, para se fazer presente seria preciso interagir com o filho.

Mas os homens não são treinados para lidar com seres essencialmente emocionais e costumam ter uma dificuldade extra de criar vínculos. Especialmente se, além disso, existir uma barreira com a mãe da criança. Não é incomum muitas mulheres buscarem em seus filhos aliados para combater a solidão pessoal, criando um pacto de que naquele mundo mãe-filho tudo será perfeito, sem máculas. Os homens, portanto, perdem de 10 a 0 diante desse concorrente mirim e, estabelecida uma alienação psicológica parental, nem sabem explicar.

Os homens estão longe serem coitados nesse processo, em especial os que se acovardam a bancar as restrições resultantes de uma gravidez não planejada. Por conta disso, a quantidade de pais foragidos ou nunca conhecidos dos filhos é maior do que as mães. A mulher, como carrega o filho no seu corpo, não tem como sair correndo. Não é impensável imaginar que o número de mães foragidas seria muito menor se pudessem deixar a barriga no lugar, como os homens fazem.

Para pessoas despreparadas, em situações inóspitas, a gravidez pode ser muito parecida com uma bomba-relógio. O cenário muda completamente quando a ideia da gravidez se converte numa barriga e numa criança fofa, já que as fantasias catastróficas são mais contornáveis depois de que um problema impessoal ganhou nome, sobrenome e sorri.

Ainda assim, para muitos homens, a dissociação emocional é mais facilitada pelo mesmo motivo que transam sem envolvimento. O hábito reforçado por uma cultura que condiciona os homens a não serem tão emocionais e vinculadores também cria pais que abandonam o trabalho parental no meio do caminho.

Buracos emocionais dos filhos e suas idealizações

O ser humano tem uma incrível capacidade de justificar seus insucessos por conta de um protocolo que não seguiu o esperado. Além do mais, certas interpretações que enfatizam a infância como o único momento de formação da personalidade reforçam a ideia de que o cenário tem que estar 100% para a engrenagem funcionar. Sou adepto da existência possível, sem idealizações.

Uma vida sem um pai ou uma mãe ou um cuidador fixo não garante um destino cheio de problemas ou desilusões, mas uma fantasia de que a vida seria perfeita com essa presença, sim.

“se meu pai estivesse aqui eu não seria assim ou assado”
É como se, na presença daquele pai imaginário, todas as lacunas de felicidade fossem preenchidas. A pessoa, a cada tropeço comum da vida, se lamenta . Essa fantasia preenche uma rachadura existencial que não tem resposta para a maioria das pessoas: lidar com os limites e incompletudes da vida.

Essa operação mental visa o único ideal de preservar a própria competência intacta enquanto os motivos pelos próprios fracassos são sempre exógenos ao sujeito. É verdade que uma coisa ou outra poderia ser diferente na presença de um pai, mas diferente não é sinal de melhor, afinal, nenhum pai ou mãe traz consigo os segredos do universo e a prevenção para todos os males do mundo.

Divórcios, por si só,também não tem o poder mágico de perturbar a cabeça dos filhos. Afinal, os filhos reagem ao clima emocional dos pais. Casais perturbados criam filhos perturbados, estejam casados ou divorciados.

Como querem aliados para a sua guerra e culpados pela infelicidade conjugal, usam os filhos como armas param chantagear e escudos para se proteger do parceiro. Isso sim é que perturba os filhos e cria sequelas, o que não é exclusividade de casais que se separam. Um evento disparador de uma característica não é a causa para um comportamento problemático, tudo depende do seguimento que se dá ao evento doloroso.

Então, Arthur, a dificuldade de tomar decisões de sua irmã ou seu egoísmo galopante não são resultado da falta de um pai, mas talvez de uma insistência em ter piedade de si mesma e, por isso, se debruçar em comportamentos autocentrados como compensação para uma vida que poderia dar certo, mas ainda não deu (seja lá o que dar certo signifique para ela).